I – DOS
SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS: SISTEMA ACUSATÓRIO E SISTEMA INQUISITÓRIO. SISTEMA
“MISTO”. REFLEXOS NA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PENAL
Segundo a doutrina, há dois
grandes sistemas processuais penais: o sistema acusatório e o sistema
inquisitório.
Basicamente, o sistema acusatório
é caracterizado pelo processo de partes. Ou seja, há a parte com atribuições de
acusar e há a parte com atribuições de defender-se. A cada uma delas atribui-se
o direito, mas também o ônus, de produzir as provas necessárias à comprovação
de suas alegações, buscando convencer o Juiz a respeito da veracidade de suas
teses. Ao acusado é assegurada uma série de garantias, alçando-o à condição de
sujeito do processo, e não de mero objeto de investigação. Há muitas formas que
podem ser utilizadas para produção de provas contra o acusado, mas não se pode
tudo. Põe-se em xeque o dogma da “verdade real”, pela qual tudo se podia,
inclusive torturar o acusado, fazendo-o confessar, e a iniciativa probatória do
Juiz. Por outro lado, não há mais hierarquia entre as provas, deixando a
confissão (obtida, muitas vezes, sob tortura), de ser considerada prova
absoluta. O Juiz é terceiro imparcial, alheio e equidistante às partes, cabendo
a ele a tarefa de julgar. Não caberia ao Juiz investigar, nem produzir provas,
seja em favor da acusação, seja em favor da defesa, sob pena de ser atingido em
sua imparcialidade.
Noutro giro, o sistema
inquisitório é caracterizado pelo seu aspecto histórico, isto é, objetiva-se a
reconstituição do fato histórico, tal como se dera, a todo custo, admitindo-se,
para tanto, todos os meios aptos à descoberta da “verdade real”, dentre elas, a
confissão sob a tortura. Aquele a quem se atribui a prerrogativa de julgar
também pode investigar ex officio,
inexistindo uma distinção entre os papéis de acusar e julgar. O procedimento é
sigiloso e o investigado não é considerado sujeito do processo, gozando de
garantias e tendo a oportunidade de participar da formação do convencimento do
julgador; pelo contrário, é mero objeto do processo de investigação. O sistema
inquisitório sofreu grande influência da Santa Inquisição Católica, ocasião em
que os inquisidores “caçavam” os hereges e os infiéis. Um bom filme que retrata
bem as características do sistema inquisitório é O Nome da Rosa.
Conforme explica Aury Lopes Jr., o
sistema acusatório originou-se, possivelmente, na Grécia, onde caberia a
qualquer cidadão exercer a acusação e apresentar todas as provas contra o
acusado. Ao Juiz, cabia julgar. No entanto, daí adveio um problema, qual seja,
a possibilidade de nenhum cidadão exercer a acusação e falhas na produção de
provas que fundamentassem esta acusação, ocasionando, em ambos os casos, a
impunidade do acusado.
Desse modo, sobretudo devido à
influência da Santa Inquisição, passou-se a enxergar que o Estado não deveria
necessitar aguardar que algum cidadão ofertasse uma acusação contra terceiros,
ou submeter-se às falhas e incompletudes das provas por ele produzidas. O
Estado deveria poder, ele mesmo, dar início a essas acusações e proceder à
obtenção de todas as provas necessárias para tanto. Reuniram-se, aqui, o papel
de investigar/acusar e o de julgar na mesma pessoa, no Inquisidor.
Mais adiante, os influxos do
Iluminismo, do Racionalismo e da Revolução Francesa trazem à tona, novamente, o
sistema acusatório, demonstrando-se a necessidade de salvaguardar o acusado,
concedendo-lhe uma série de garantias, dentre elas, a de ser julgado por um
órgão imparcial, por um Juiz imparcial, sendo certo que, quanto mais o Juiz se
envolvesse na atividade investigativa, menos imparcial ele se tornaria. Por
outro lado, vislumbrando a inconveniência de aguardar-se a atuação do
particular e das provas por ele colhidas, desenvolveu-se a figura de um órgão
público que teria, dentre outras atribuições, a de exercer a acusação. O Ministério
Público. Mas claro que não a todo custo.
Em
resumo, pode-se distinguir os sistemas acusatório e inquisitório, a partir de
três características:
CARACTERÍSTICA
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ACUSATÓRIO
|
INQUISITÓRIO
|
DIVISÃO DE FUNÇÕES (ACUSAR E JULGAR)
|
SIM, a acusação compete ao MP; o julgamento, ao
Juiz
|
NÃO, o órgão que investiga, acusa e julga
|
GESTÃO DA PROVA
|
Cabe às partes produzirem as suas provas, o Juiz
decide
|
O órgão que irá julgar também realiza a produção
das provas
|
PARTICIPAÇÃO DAS PARTES, SOBRETUDO DO
ACUSADO
|
SIM, o acusado é sujeito do processo, tem garantias
e participa do contraditório
|
NÃO, o acusado é objeto do processo, não tem
garantias, não há contraditório, processo é sigiloso
|
À luz da Constituição Federal, sem
sombra de dúvidas, hoje adotamos o sistema acusatório. A idéia desenvolvida por
alguns doutrinadores, no sentido de que adotaríamos um sistema “misto”, posto
que o Inquérito Policial é inquisitório não procede, pelo simples fato de que o
Inquérito ocorre em fase anterior ao processo, não sendo possível classificar o
nosso sistema processual a partir de elemento anterior e estranho a ele. Nosso
sistema é o sistema acusatório. A Constituição Federal diz isso no art. 129, I,
quando afirma que a titularidade da Ação Penal compete ao Ministério Público.
Em outras palavras, o papel de imputar um crime a alguém e de
apresentar/produzir as provas nesse sentido compete ao Ministério Público,
órgão distinto daquele que irá analisar a acusação, o Poder Judiciário.
A nosso sentir, não é justo
afirmar que o nosso Código de Processo Penal seja inquisitório, mas também não
se pode desconhecer que, em algumas passagens, ele estava longe de ser
acusatório, tanto é que, ao longo dos tempos, houve várias alterações
legislativas, com o intuito de aproximá-lo do sistema acusatório, embora ainda
existam discussões doutrinárias a respeito da compatibilidade de alguns de seus
institutos com o sistema acusatório, merecendo destaque os seguintes:
1 – A
instauração ex officio de Ação Penal: O Código de Processo Penal admitia,
em seu art. 26, a instauração ex officio
do processo penal nos casos de contravenções. Após o advento da CF, esse dispositivo
não foi recepcionado.
2 – A questão
da mutatio libelli: Até a entrada
em vigor da Lei n. 11.719/08, o Código de Processo Penal previa que, na
hipótese de modificação da acusação em razão de fato novo não-contido na
Denúncia, haveria necessidade de o Ministério Público aditar a sua Denúncia,
caso a nova acusação fosse prejudicial ao acusado; caso contrário, se fosse de
gravidade semelhante ou inferior à originária, o Juiz poderia determinar a
modificação ex officio. Esse
dispositivo foi modificado, justamente porque não se adequava a uma das
principais características do sistema acusatório, qual seja, a distinção entre
as atribuições de acusar e julgar. O Juiz não pode acusar, ou modificar a
acusação, mesmo que seja para beneficiar o acusado.
3 – A produção
de provas pelo Juiz: É uma questão bastante polêmica, notadamente quanto à
constitucionalidade do art. 156, I, CPP, que admite que o Juiz determine a
produção de provas consideradas urgentes mesmo durante a fase pré-processual. É
interessante lembrar que o STF já julgou inconstitucional o art. 3º, da Lei do
Crime Organizado (ADI n. 1.570-2), que previa a produção de provas pessoalmente
pelo Juiz, a fim de se resguardar o sigilo. Outra norma que gera bastante
controvérsia é a autorização para que o Juiz, de ofício, mesmo durante a investigação,
determine a interceptação telefônica (art. 3º, Lei n. 9.296/96). Como frisado,
no curso de um sistema acusatório, compete às partes a produção das provas
necessárias à formação do convencimento do Juiz. Não é papel do Juiz substituir
a atuação probatória de qualquer uma das partes, seja MP, seja defesa. Nesse
sentido, penso eu, a norma que autoriza o Juiz interceptar, de ofício, a
comunicação telefônica, na fase investigativa ou processual, é
inconstitucional, por violar o sistema acusatório. Entretanto, não chego ao
ponto de afirmar que o Juiz não possa produzir qualquer prova, tendo que ficar
absolutamente inerte. O Juiz não pode substituir as partes, mas pode, a meu
ver, determinar diligências com o objetivo de sanar dúvidas surgidas ao longo
da instrução, como autoriza o art. 156, II, CPP. Acredito que exista uma
diferença acentuada entre o Juiz tomar a iniciativa da produção de uma
determinada prova e o Juiz buscar esclarecer dúvidas surgidas, a partir das
provas produzidas pelas partes, ao longo da instrução.
4 – O
procedimento de inquirição das testemunhas: Atualmente, o Código de Processo
Penal prevê, em seu art. 222, que as testemunhas serão inquiridas diretamente
pelas partes (sistema do cross
examination), sendo que o Juiz poderá, após a inquirição pelas partes,
fazer perguntas complementares. É uma sistemática muito mais compatível com o
sistema acusatório do que a anterior, que estabelecia que o Juiz inquiriria a testemunha
antes das partes.
5 – O papel do
Juiz durante a fase pré-processual: As disposições do CPP no sentido de que
a Autoridade Policial deve encaminhar os pedidos de dilação de prazo para
conclusão do IPL, ou os IPL´s relatados, ao Poder Judiciário, também não se
encaixam no sistema acusatório previsto na Constituição Federal. Com efeito, se
acusação houver, quem a fará é o MP. Nessa esteira, cabe a ele decidir se já há
elementos suficientes ou, caso contrário, se há necessidade de dilatar o prazo
do IPL para que novas diligências sejam efetuadas. Da mesma forma, é para ele
que deve ser remetido o IPL relatado para, se for o caso, oferecer a Denúncia.
Atualmente, pelo menos no âmbito da Justiça Federal, o IPL tramita diretamente
entre a Polícia e o MPF, só indo para a Justiça Federal em caso de Denúncia ou
em caso de medidas restritivas de direitos e garantias individuais, tais como
interceptações, quebras de sigilo, prisões etc...
Nessa linha de raciocínio, o papel
do Juiz, durante a fase pré-processual, é apenas o de Juiz de Garantias,
fiscalizando e controlando medidas que possam restringir ou relativizar
direitos e garantias dos investigados.
6 – O controle
do Juiz sobre a Promoção de Arquivamento (art. 28, CPP): Atualmente, a
promoção de Arquivamento do Inquérito Policial está submetida ao controle
jurisdicional. Discordando da promoção formulada pelo MP, o Juiz não pode
obrigar o MP a oferecer a Denúncia. O que, de acordo com o art. 28, CPP, pode
ser feito é submeter aquela promoção a um órgão superior do próprio MP (PGJ, no
caso do MPE, ou a 2ªCCR, no caso do MPF). Caso esse órgão ratifique o
Arquivamento, o Juiz terá de acolhê-lo. Bem analisado o dispositivo em questão,
vê-se que ele também não se adequa perfeitamente ao sistema acusatório, uma vez
que não há razão lógica para o Juiz manifestar-se sobre a promoção de
Arquivamento. Se houve Arquivamento, não há acusação. Se não há acusação, não
há o que ser julgado, portanto, não há motivo para a atuação do Juiz.
Como frisado anteriormente, o
papel do Juiz na fase pré-processual, é direcionada meramente à efetivação dos
direitos e garantias dos investigados. Se o órgão dotado de atribuição
acusatória entende que não há razão para a propositura de uma Denúncia, não é
papel do Juiz dizer que há elementos probatórios suficientes para tanto. Essa
decisão deve ser tomada no âmbito do próprio MP.
Nessa linha de raciocínio,
destaque-se o posicionamento da 2ª CCR-MPF, que atribui ao órgão o controle da
promoção de Arquivamento formulada pelo membro do MPF.
Cumpre ressaltar, por último, que,
no projeto do novo Código de Processo Penal, não mais se vislumbra a presença
de dispositivo semelhante ao art. 28, CPP, estando o controle da promoção de arquivamento submetida ao órgão do próprio MP.
7 – A impossibilidade
de o Ministério Público desistir da Ação Penal e a possibilidade de o Juiz condenar o réu, quando o Ministério Público
posicionar-se por sua absolvição Estão previstas nos arts. 42 e 385, CPP. Segundo parcela da doutrina, não seriam
compatíveis com o sistema acusatório, posto que, na prática, se o MP deseja
desistir da Ação Penal é porque não mais vê fundamento na acusação. Até aí não haveria grande problema, se a
manifestação do MP pela absolvição não pudesse ser desconsiderada pelo Juiz. Qual
é a diferença prática entre o órgão atribuído da função acusatória não exercer
a acusação e não persistir na acusação já formulada? Nenhuma. Se o MP
manifesta-se pela absolvição, não há mais imputação jurídica de um fato
criminoso a alguém. Então, qual acusação estará julgando o Juiz?
8 – A
decretação da Prisão Preventiva ex
officio durante as investigações: De acordo com a atual redação do art.
311, CPP, o Juiz poderá decretar a prisão preventiva ex officio, no curso da Ação Penal; durante a investigação, só se
houver requerimento. Antigamente, admitia-se a decretação de ofício até mesmo
durante as investigações, o que poderia ocasionar um problema grave (que ainda
persiste no caso de representação policial), a saber: Suponha-se que houve a
decretação da prisão preventiva ex
officio (ou mediante representação policial). Os autos irão, então, ao MP,
para oferecer Denuncia, no prazo legal de 05 dias (investigado preso). E se o
MP não vislumbrar indícios suficientes de materialidade e autoria para
denunciar? Ele não pode ser obrigado a denunciar porque o Juiz decretou a
prisão preventiva por ele não requerida. Por outro lado, o investigado não pode
ficar preso por tempo indeterminado até que os indícios sejam colhidos. E se o
MP quiser promover o arquivamento? Percebem o problema? Durante a fase de
investigação, a prisão deve ser requerida pelo órgão que possui a atribuição de
acusar, sob pena de, sem acusação, a prisão ter que ser revogada, causando um
embaraço ao Poder Judiciário e um constrangimento inquestionável ao indivíduo.
9 - O
Ministério Público como parte (im)parcial: Por fim, deixei uma questão que
gera muita polêmica: No processo penal, o MP é parte parcial (no
sentido de atuar direcionado à acusação/condenação) ou imparcial (no sentido de
atuar direcionado à tutela da ordem jurídica). Há opiniões e argumentos em
ambas as vertentes. Pode-se discutir horas e horas, sem que as partes cheguem
ao consenso. Portanto, darei a minha opinião. Não digo que é a tese correta, é
apenas a que eu entendo mais adequada. O MP atua como parte imparcial. O
argumento de que o MP foi criado justamente para ser o órgão estatal de
acusação, retirando esse papel do Juiz Inquisidor não leva à conclusão de que o
MP busque, a todo custo, a condenação do réu. O MP não é órgão de acusação, mas
sim órgão para a acusação. Em outras palavras, se alguém tiver que acusar, esse
alguém será o MP. Mas isso não quer dizer que o MP terá que acusar sempre, ou persistir na acusação já formulada,
sendo possível, como se sabe, a promoção de arquivamento, antes da fase
processual, e o pedido de absolvição, durante a fase processual. Aliás, o MP
poderá, até mesmo, recorrer de eventual sentença condenatória. Ou, por outro
lado, não recorrer de eventual sentença absolutória. Outrossim, o MP pode
impetrar HC em benefício do paciente. Tudo isso demonstra que, no processo
penal, o MP não atua contra o réu, mas sim na tutela da ordem jurídica e a
favor da sociedade, podendo-se até afirmar que o MP não acusa, ele defende.
Defende a sociedade, sobretudo na perspectiva correta do garantismo penal, que enxerga
os direitos fundamentais, além de garantias contra o Estado (direitos de
defesa), garantias a serem efetivadas mediante atuações do Estado (direitos de
promoção). Por fim, talvez o equívoco esteja em confundir-se órgão e membro. O
órgão é imparcial, mas um membro, aqui ou ali, pode não agir de forma imparcial
e, para isso, há instrumentos processuais adequados. O que também pode
acontecer, é certo, com Juízes, p.ex, e ninguém cogita afirmar que o Poder
Judiciário não é imparcial no processo penal.
PRÓXIMO
TÓPICO: Eficácia da Lei Processual Penal no Tempo