quarta-feira, 13 de julho de 2016

As elementares "ocultas" do crime de dispensa indevida de licitação.

O crime de contratar diretamente, por dispensa ou inexigibilidade, encontra-se tipificado no art. 89, da Lei n. 8.666/93:


Art. 89.  Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:


            Observa-se, a partir de uma simples leitura do tipo penal, que a lei não estabelece nenhum elemento subjetivo do tipo (“com a finalidade de .....”, “a fim de obter vantagem...”, “causando dano....”), diferentemente, por exemplo, do crime de fraude em licitação (art. 90), a saber:


Art. 90.  Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação


            Como não poderia ser diferente, o entendimento dos Tribunais Superiores foi, por muito tempo, o de que o crime do art. 89 tratar-se-ia de crime formal, cuja consumação ocorre independentemente da configuração de algum resultado material (vantagem, dano etc...).


            No entanto, a partir de uma decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça na Ação Penal n. 480 (que tratava de uma ex-Prefeita, atual Conselheira do TCE. Surpreendentemente, as guinadas jurisprudências costumam ocorrer em casos com réus importantes e influentes), o posicionamento foi revisto, tanto pelo STJ, quanto pelo STF, passando-se a exigir, para fins de caracterização do crime, (i) a intenção de causar dano e (ii) a efetiva ocorrência do dano.


          Esse entendimento, ao atrelar a ideia da ocorrência do crime à existência de prejuízo ao Erário, no sentido de que, se o preço contratado era compatível com o preço de mercado, não houve dano, para além de criar elementares inexistentes no tipo penal, chancelou a absurda conclusão de que, basta que haja contratação dentro do preço de mercado, para que não haja o crime.


         Curiosa, por sinal, a Ementa do seguinte Acórdão do STJ:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 89  DA  LEI  N. 8.666/1993. DISPENSA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO FORA  DAS  HIPÓTESES  PREVISTAS  EM  LEI.  DOLO  ESPECÍFICO. EFETIVO PREJUÍZO AO ERÁRIO. COMPROVAÇÃO. NECESSIDADE. ATIPICIDADE DA CONDUTA NARRADA NA DENÚNCIA. RECURSO PROVIDO. 1.  Como  cediço,  a jurisprudência desta Corte Superior acompanha o entendimento do Pleno do Supremo Tribunal Federal (Inq. n. 2.482/MG, julgado  em 15/9/2011),  no  sentido de que a consumação do crime do art.   89   da  Lei  n. 8.666/1993  exige  a  demonstração  do  dolo específico, ou seja, a intenção de causar dano ao erário e a efetiva ocorrência  de  prejuízo  aos  cofres públicos, malgrado ausência de disposições legais acerca dessa elementar. Precedentes. (...) (STJ, RHC35598, Rel. Min. Ribeiro Dantas, p.15/04/2016)


            Um exemplo bem claro demonstra o equívoco desta interpretação.


            Tício é Prefeito do Município X. Tício é empresário do ramo de venda de veículos, possuindo, juntamente com seus familiares, a empresa Y, sediada naquele Município. No curso de seu mandato, Tício vislumbra a necessidade de renovação da frota de veículos do Município, razão pela qual determina a realização de uma pesquisa de preços, constatando-se que o veículo custa em torno de R$ 50.000,00. Com base nessas informações, Tício mantém contato com os seus familiares e propõe que a empresa Y, de sua propriedade, forneça diretamente os veículos, pelo preço de R$ 49.000,00, sem que esteja configurada qualquer situação de dispensa ou inexigibilidade.


  Seguindo a lógica do STF e do STJ, Tício, Prefeito do Município X, que contratou diretamente a sua própria empresa, não cometeu o crime de dispensar, fora das hipóteses legais, licitação, haja vista que não restou caracterizada a intenção de causar dano, muito menos a efetiva ocorrência de dano ao Erário.


 Alguém acha que essa é a conclusão adequada?


A falha principal do posicionamento que exige tais “elementares” é restringir o fundamento da licitação à busca pela melhor proposta, esquecendo-se, dessa forma, que a licitação também almeja fazer valer princípios constitucionais outros, tais como a impessoalidade,  moralidade e a isonomia, permitindo, assim como deve ocorrer em uma República, que todos tenham possibilidade de concorrer, em igualdade de condições, para contratar com o Poder Público.


Em boa hora, e renovando as esperanças de uma nova reviravolta jurisprudencial, o STF, no julgamento da Ação Penal 971, de Relatoria do Ministro Edson Fachin, decidiu sem sentido contrário, enfatizando que o crime de dispensar licitação é meramente formal. A notícia pode ser lida AQUI.


Assinalou-se que:


“Em relação ao crime de dispensa indevida de licitação, o ministro Fachin ressaltou a natureza formal do delito, não sendo necessária demonstração de efetivo prejuízo para tipificar a conduta. Destacou não ser possível que o administrador escolha quem vai efetuar determinada obra, ainda que fique provado que o poder público não fosse receber melhor proposta, pois a exigência de licitação para a contratação pelo poder público tem como objetivo de preservar bens maiores que apenas eventuais prejuízos ao erário.