domingo, 19 de junho de 2016

BOA-FÉ OBJETIVA E O PROCESSO PENAL


É praxe que, quando alvo de investigação ou Denúncia, a pessoa, sobretudo quando se trata de alguém com notoriedade social, p.ex, um político, mencione que esteja disposto a colaborar com a Justiça, a fim de provar a sua inocência. Infelizmente, não é preciso ter tanta experiência na seara criminal para se constatar que o discurso é, como se diz, da “boca para fora”, pois, a bem da verdade, a realidade do nosso processo penal é pródiga em manobras defensivas procrastinatórias, protelatórias e contraditórias, que visam, muito longe de permitir que seja proferida uma decisão, a evita-la, ou a prolonga-la ao máximo. Costumou-se designar este comportamento de advocacia das nulidades.

Qualquer oposição ou manifestação contrária a este tipo de comportamento, ou ainda, qualquer tentativa de coibi-lo, encontra forte resistência no discurso de que se está apenas a exercer o direito constitucional à ampla defesa.

Em sendo assim, é de se questionar: ainda que ampla, a defesa é absoluta e ilimitada? Tudo é válido em nome da ampla defesa? A boa fé processual, expressamente reconhecida no Novo Código de Processo Civil (arts. 5º e 6º), estende-se ao processo penal? Em caso negativo, por quê não? Em caso positivo, de que maneira boa-fé processual e ampla defesa são conciliáveis?

A fim de apresentar a nossa opinião sobre estes questionamentos, relataremos três situações comuns, a saber:

(i) a defesa arrola diversas testemunhas, notadamente autoridade políticas (que seguem rito próprio de arguição), domiciliadas em várias cidades de diversos Estados e, até mesmo, residentes no exterior, sem especificar como tais pessoas poderiam contribuir com os fatos. O Juízo indefere a produção das provas. Em sede recursal ou em Habeas Corpus, a defesa suscita a nulidade da decisão, por ofensa ao princípio da ampla defesa.

(ii) a defesa compromete-se a trazer consigo para a audiência, independentemente de intimação, as suas testemunhas. Por ocasião do ato, menciona que não foi possível trazê-las, pugnando pela redesignação da audiência e substituição destas testemunhas, o que é indeferido. Em sede recursal ou em Habeas Corpus, a defesa suscita a nulidade da decisão, por ofensa ao princípio da ampla defesa.

(iii) réu devidamente citado em seu endereço, muda-se sem comunicar ao Juízo, razão pela qual o processo segue sem a sua presença (art. 367, CPP), não sendo realizado o seu interrogatório. Em sede recursal ou em Habeas Corpus, a defesa suscita a nulidade da decisão, por ofensa ao princípio da ampla defesa, argumentando que o Estado não adotou todas as diligências possíveis para localizá-lo.

Pois bem. O princípio da boa-fé processual encontrou amparo expresso no Novo Código de Processo Civil. Nada obstante isto, é possível extrair o seu fundamento primário na própria Constituição Federal, especificamente na cláusula do devido processo legal, haja vista que o processo deve caminhar sempre adiante, devendo as partes colaborarem e contribuírem para que o procedimento avance e seja possível a resolução do mérito da causa.

Trata-se de norma de conduta, ou comportamento, direcionada a estabelecer deveres de lealdade, informação e cooperação aplicável ao Juízo e às partes. Diferentemente da boa-fé subjetiva, focada na intenção ou na vontade da pessoa, a boa-fé objetiva é pragmática, preocupa-se com o comportamento efetivo, independentemente da existência, ou não, de alguma má intenção.

Não há qualquer razão para limitar a aplicação do dever processual de as partes agirem conforme a boa-fé objetiva apenas ao processo civil, no qual, via de regra, os interesses são meramente econômicos e disponíveis, e não ao processo penal, no qual estão em jogo, de um lado, a liberdade individual do réu, e, de outro, a ofensa a variados bens jurídicos tutelados pelo Estado (vida, liberdade, patrimônio, meio ambiente etc...). Como dito, trata-se de princípio com envergadura constitucional, portanto, devendo as normas processuais serem lidas, ou relidas, à luz dos dispositivos constitucionais.

A própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de consolidar esta conclusão, ao analisar casos semelhantes às situação acima narradas, senão vejamos:

HABEAS CORPUS. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. DEPUTADO ESTADUAL. DISPENSA ILEGAL DE LICITAÇÃO E PECULATO. NULIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. INDEFERIMENTO MOTIVADO DE DILIGÊNCIAS. DISCRICIONARIEDADE DO JUIZ. ARTIGO 89 DA LEI N. 8.666/93. EXAME PERICIAL. PRESCINDIBILIDADE. PROVA EMPRESTADA. CONTRADITÓRIO NOS PRESENTES AUTOS. PARTICIPAÇÃO NA PRODUÇÃO PERANTE O PROCESSO DE ORIGEM. INÉRCIA DA DEFESA DEVIDAMENTE INTIMADA PARA O ATO. ARTIGO 565 DO CPP. NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. ACESSO À INTEGRALIDADE DE AUTOS DE INQUÉRITO CIVIL E DE REQUISIÇÃO DE DOCUMENTOS PERANTE O TRIBUNAL DE CONTAS. INDEFERIMENTO JUSTIFICADO. MODIFICAÇÃO. INVIABILIDADE. REVOLVIMENTO DE PROVAS. DESNECESSIDADE DE TRÂNSITO EM JULGADO DO PROCESSO ORIGINÁRIO PARA TRASLADO DE PEÇAS. INVESTIGAÇÕES E AÇÕES DE NATUREZA CÍVEIS PRESIDIDAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. INEXISTÊNCIA. DESNECESSIDADE DE ACOMPANHAMENTO DAS DILIGÊNCIAS PELA CORTE A QUO. RÉUS COM ADVOGADOS DIFERENTES. PRAZO EM DOBRO. NÃO INCIDÊNCIA DAS DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INDEFERIMENTO DAS DILIGÊNCIAS. NÃO DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. ORDEM DENEGADA. 1. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que "não se acolhe alegação de nulidade por cerceamento de defesa, em função do indeferimento de diligências requeridas pela defesa, pois o magistrado, que é o destinatário final da prova, pode, de maneira fundamentada, indeferir a realização daquelas que considerar protelatórias ou desnecessárias ou impertinentes" (REsp. 1.519.662/DF, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, j. em 18/8/2015, DJe 1/9/2015). (....) (STJ, HC35763, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, p. 01/06/16)



RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ARTIGO 183 DA LEI N. 9.472/97. OITIVA DE TESTEMUNHA DA DEFESA. INDEFERIMENTO. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. RÉU E DEFENSOR QUE SE COMPROMETERAM A APRESENTAR TESTEMUNHAS INDEPENDENTEMENTE DE INTIMAÇÃO. ARTIGO 565 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. RECURSO IMPROVIDO. 1. "Uma vez assumido pela defesa o compromisso de apresentação espontânea de suas testemunhas na audiência, eventual ausência configura verdadeira desídia defensiva, não podendo, portanto, o indeferimento dos pedidos de substituição do rol e de realização de nova audiência serem considerados como cerceamento de defesa" (HC 117.952/PB. Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 27/05/2010, DJe 28/06/2010). 2. A declaração de nulidade a que tenha dado causa ou para a qual tenha a parte contribuído, viola o princípio do nemo auditur propriam turpitudinem allegans e a disposição do artigo 565 do Código de Processo Penal. 3. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento. (STJ, RHC40851, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, p.09/03/2016)

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. 1. CRIME DE HOMICÍDIO. INTIMAÇÃO PARA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO. RECORRENTE NÃO ENCONTRADO. APLICAÇÃO DA DISCIPLINA DO ART. 267 DO CPP. 2. NECESSIDADE DE INFORMAR A ALTERAÇÃO DO ENDEREÇO. VENIR CONTRA FACTUM PROPRIUM. PRECEDENTES. 3. RECURSO EM HABEAS CORPUS IMPROVIDO. 1. Embora o recorrente tivesse plena consciência de que contra ele havia um processo criminal em curso, mudou-se de endereço, sem comunicar à justiça, razão pela qual não foi encontrado para ser intimado da audiência de instrução, debates e julgamento. Dessarte, incide no caso dos autos a disciplina do art. 367 do Código de Processo Penal, o qual dispõe que "o processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo". 2. Não pode ser atribuído ao judiciário o não esgotamento dos meios para encontrá-lo, pois, sabendo do processo em curso contra si, tinha o dever de manter seu endereço atualizado. Ademais, é entendimento do Superior Tribunal de Justiça que a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com sua anterior conduta. Portanto, reconhecer eventual nulidade no caso seria inadequado no plano da ética processual, por implicar violação do princípio da boa-fé objetiva, na dimensão venire contra factum proprium. 2. Recurso em habeas corpus improvido. (STJ, RHC49159, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, p. 28/03/16)



Portanto, a primeira conclusão que podemos extrair da aplicação da boa-fé no processo penal é a descaracterização de supostas situações de nulidade suscitadas pela defesa. Em outras palavras, o comportamento processual da defesa advoga no sentido contrário do seu pedido de reconhecimento do suposto vício.

Avançando, ainda nas hipóteses em que tenha ocorrido algum vício processual, a boa-fé processual impõe às partes o dever de comparecer em Juízo e suscitá-lo na primeira oportunidade em que dele tomar conhecimento, ou, pelo menos, em prazo razoável, sob pena de preclusão. Não se coaduna a boa fé processual com a prática de “guardar” uma tese de nulidade para argui-la em um momento processual futuro, objetivando causar o maior prejuízo possível à marcha processual e, com isso, maximizar a possibilidade da configuração da prescrição retroativa, assim como o próprio trânsito em julgado.

Sobre o tema, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento acerca da abusividade da “nulidade de algibeira”, ou seja, aquela matéria que, nada obstante pudesse ter sido suscitada há muito tempo pela defesa – vez que de seu conhecimento -, é guardada como um trunfo para ser arguida apenas lá na frente. Por todos, citamos o AgRg no REsp 1391066, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, p. 19/11/05.

Em caso paradigmático, o STJ refutou a tese de nulidade em virtude da ausência de intimação da defesa para constituir novo advogado, nomeando-se, de logo, a Defensoria Pública para representa-lo, sob o fundamento de que a ausência de intimação teria ocorrido em 1992, enquanto que a nulidade só teria sido suscitada, em sede de Habeas Corpus, em 2005, doze anos depois, e que os réus desapareceram, o que impossibilitaria qualquer tentativa de intimá-los, senão vejamos:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO, ESPECIAL OU DE REVISÃO CRIMINAL. ESTUPRO. NULIDADE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NOMEAÇÃO DE DEFENSOR PÚBLICO SEM INTIMAÇÃO DO PACIENTE. INOCORRÊNCIA. INÉRCIA DA DEFESA. PRECLUSÃO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. (...) 3. Não se vislumbra qualquer ilegalidade na decretação de revelia com a conseqüente nomeação de Defensor Público, quando, devidamente intimados, a defesa e o paciente não compareceram à audiência. 4. O alegado cerceamento de defesa decorrente da nomeação da Defensoria Pública teria ocorrido em 1992, sendo argüido em sede do presente habeas corpus apenas no ano de 2005, ou seja, cerca de 12 anos após a ocorrência da nulidade. Dessa forma, não há como reconhecer a nulidade, uma vez operada a preclusão. Precedentes. 5. Habeas corpus não conhecido. (STJ, HC44104, Rel. Min. Nefi Cordeiro, p. 17/03/05)

Com efeito, não nos parece comportamento compatível com o “devido processo leal” a defesa, mesmo tendo tomado ciência de uma possível nulidade, deixar de comunica-la, na primeira oportunidade possível, ao Juiz, a fim de que, se for o caso, seja sanada. Muito pelo contrário, realça um comportamento inadequado e deliberadamente intencionado a tumultuar o andamento processual com um possível reconhecimento futuro que, como consequência, ensejaria a anulação de todos os atos processuais posteriores e decorrentes do ato nulo.

Importante destacar, por fim, que a alteração do regime das nulidades processuais, notadamente a fixação de prazos adequados para suscitá-las, é uma das dez medidas propostas pelo Ministério Público Federal, que deu origem a Projetos de Lei que, atualmente, encontram-se em tramitação no Congresso Nacional.



A título de conclusão, estamos absolutamente convencidos de que o princípio da boa-fé processual tem total aplicação no processo penal, sem que isso caracterize ofensa ou limitação à ampla defesa, posto não ser possível confundir ampla defesa com impunidade. A defesa pode muito, mas não pode tudo. O processo precisa caminhar até o seu desfecho e a ampla defesa não pode justificar medidas defensivas em sentido diametralmente oposto.