sábado, 7 de janeiro de 2017

DELEGADO DE POLÍCIA TEM GARANTIA DE INAMOVIBILIDADE?

Recentemente, com a edição da Lei n. 12.830/2013, que, em seu art. 2º, §5º, estabeleceu que "[a] remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado.", parcela da doutrina (especialmente autores delegados de polícia) passou a afirmar que tal dispositivo teria estabelecido a garantia da inamovibilidade, tal como ela existe para a magistratura,para o MP, e mais recentemente, para a Defensoria.

Esta conclusão é absolutamente equivocada e demonstra, mais uma vez, a presença de forte desejo corporativista por detrás desse tipo de afirmação, senão vejamos:

A garantia da inamovibilidade, em resumo, consiste na garantia dos membros da magistratura, do MP e da Defensoria Pública de não serem removidos de suas lotações, sem que haja a sua concordância, salvo por interesse público, em caráter de sanção administrativa (art. 95, II; art. 128, §5º, I, b; e 134, I, todos da Constituição Federal).

Em outras palavras, um Procurador da República não pode ser removido de uma cidade para a outra, contra a sua vontade, salvo se esta remoção for aplicada como sanção pela prática de infração disciplinar. Mas, por exemplo, este mesmo Procurador não poderá ser removido porque a outra lotação está com um volume maior de trabalho, ou porque está vaga há certo tempo etc...

Logo se vê, portanto, que afirmar-se que o delegado de polícia não pode ser removido sem ato fundamentado não guarda nenhuma semelhança com o instituto da inamovibilidade, que, como dito, veda qualquer tipo de remoção, ainda que fundamentada, salvo se aplicada como sanção disciplinar.

Frise-se que a inamovibilidade é garantia assegurada em sede constitucional, e a Lei n. 12.830/2013 é mera lei ordinária.

Além disso, basta uma leitura dos textos normativos para se identificar a absoluta distinção entre as suas redações. Com efeito, enquanto os dispositivos constitucionais que estabelecem a inamovibilidade fazem alusão expressamente ao instituto e o apresenta como uma garantia dos membros daquelas instituições, a Lei n.12.830/2013 não faz qualquer referência ao instituto da inamovibilidade.

Muito pelo contrário. Ela trata justamente do instituto que é vedado pela inamovibilidade: a remoção sem a concordância do agente público.

Afinal, se a norma veda a remoção sem fundamentação, conclui-se que ela autoriza a remoção, desde que fundamentada. E, sendo possível a remoção fundamentada, descabe cogitar-se de inamovibilidade.

Interessante mencionar que essa doutrina, ciente da absoluta discrepância entre as situações narradas, afirma que a inamovibilidade do delegado de polícia existiria, mas seria relativa.

Inamovibilidade relativa, com o devido respeito, é algo parecido com a história da mulher que está meio grávida. Não dá para engolir. Ou há inamovibilidade, ou não há. No caso dos delegados de polícia, não há inamovibilidade alguma.

Quanto a isto, basta indagar, por exemplo: Se o Delegado atua em uma Delegacia com outros dois Delegados, ele pode ser removido para atuar em outra Delegacia, cujo único Delegado aposentou-se? Ou seja, diante do interesse público de não deixar aquela Delegacia sem qualquer Delegado, poderá ser feita a remoção? A resposta é, desenganadamente, positiva.

Se alguém ainda tem dúvida sobre como as situações são escancaradamente diversas, cumpre questionar: na mesma hipótese acima, o Juiz poderia ser removido para uma outra Vara, que ficaria sem titular? Sem dúvidas, não, porque é inamovível.

Nessa linha de raciocínio, resta evidente que a regra prevista no art. 2º, §5º, da Lei n. 12.830/2013, longe de estabelecer a garantia da inamovibilidade ao delegado de polícia, apenas reafirmou o óbvio: o ato de remoção, como ato administrativo que é, precisa ter motivo e este motivo precisa ser explicitado.

O que se buscou vedar, na verdade, foi o desvio de finalidade, vício que invalida o ato administrativo. Já inviabilizava antes dessa norma e continuará inviabilizando após a sua edição. Com efeito, se o Delegado for removido por perseguição política, por exemplo, esta remoção é nula, não porque ele não poderia ser removido sem a sua concordância (inamovível), e sim porque um dos elementos do ato administrativo está viciado e vicia, por sua vez, a higidez de todo o ato.

Mas, diferentemente de juízes, membros do MP e da Defensoria, que verdadeiramente possuem inamovibilidade e não podem ser removidos sem a sua concordância, salvo em caráter de punição disciplinar, o delegado de polícia continua sendo passível de remoção, sim, por determinação de seu superior hierárquico, bastando, para tanto, que o ato seja devidamente motivado em razões de interesse público, como, pex., aposentadorias, excesso de trabalho em outra localidade etc...

A QUEM COMPETE A DECISÃO SOBRE O ARQUIVAMENTO DA INVESTIGAÇÃO EM UM SISTEMA PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIO?

Sabe-se que, de acordo com o vigente art. 28, CPP, caso o Juiz discorde e não homologue a Promoção de Arquivamento formulada pelo Ministério Público, ele deve encaminhar os autos à apreciação do órgão superior do Ministério Público.

No caso do MPE, o Procurador Geral de Justiça. No caso do MPF, se antes apenas a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão tenha atribuição criminal; atualmente, outras Câmaras também possuem semelhante atribuição, tal como a 4ª CCR, em matéria criminal ambiental, e a 5ª CCR, que abarca a matéria criminal referente ao desvio de recursos públicos, por exemplo.

O ponto em discussão é saber se, em um sistema acusatório, cabe ao Poder Judiciário decidir sobre a manifestação do titular da Ação Penal acerca do “não-processo”, ou seja, a respeito da inexistência de elementos que permita a instauração de um processo penal, com a propositura da Denúncia.

A resposta é desenganadamente negativa.

Em um sistema acusatório, a decisão final sobre ajuizar, ou não, Ação Penal em face de alguém recai sobre o Ministério Público, e não sobre o Poder Judiciário.

O papel do Juiz, durante a investigação, é apenas atuar nas demandas relacionadas à reserva da jurisdição, tais como pedidos de prisão, busca e apreensão, afastamentos de sigilos etc...Tanto é assim que a tramitação do Inquérito Policial dá-se diretamente entre Polícia e MP. Por tal razão, descabe cogitar-se de qualquer atuação do Juiz quanto à decisão do MP em propor Denúncia ou promover arquivamento.

Não se trata de querer fortalecer o MP ou de desmerecer a atuação do Poder Judiciário, nem de qualquer tentativa de submissão desse àquele órgão, mas apenas de reconhecer o papel de cada qual no contexto da persecução penal. Ao MP, cabe denunciar ou arquivar. Ao Juiz, cabe decidir se aceita, ou não, a acusação, e, nesse caso, dá-se prosseguimento ao processo penal.

É válido registrar, por oportuno, que, no âmbito do MPF, muitos colegas já adotam a sistemática proposta no Enunciado n. 09, da 2ªCCR, submetendo o arquivamento dos Inquéritos Policiais diretamente ao órgão revisor, com a devida comunicação ao Juiz, em caso de homologação do arquivamento.

Quando se defende esse posicionamento – o de que cabe ao MP decidir sobre denunciar ou arquivar – logo se levantam vozes contrárias (comumente de Delegados de Polícia), argumentando que tal entendimento significaria concentração de amplos poderes nas mãos do MP, que passaria a atuar sem qualquer tipo de controle por parte do Poder Judiciário.

Se você é uma das pessoas que tem a visão acima citada, cabe alertá-lo de que, atualmente, o MP já possui a palavra final em caso de arquivamento, uma vez que o Juiz não pode determinar o oferecimento da Denúncia. De fato, ele apenas encaminha os autos ao órgão revisor do próprio MP, a quem caberá tomar a decisão final. Se o arquivamento for mantido, o Juiz obrigatoriamente terá de acatá-lo. Portanto, o controle da atuação do Promotor Natural já é feito pelo próprio MP, e não pelo Poder Judiciário, que exerce uma função meramente intermediária.

Por esse motivo, a jurisprudência do STF e do STJ é pacífica em reconhecer que, diante de um arquivamento formulado pelo Procurador Geral da República ou por um Subprocurador Geral da República (agindo sob delegação do PGR), o Tribunal não pode rejeitá-lo, visto que não haveria como enviar os autos ao órgão interno superior ao Promotor Natural, eis que o PGR é a autoridade máxima dentro do MPF.

Portanto, ao se retirar a participação intermediário do Poder Judiciário no arquivamento da investigação, além de evitar o constrangimento de o Juiz ter que acatar um arquivamento em relação ao qual se manifestou contrário, fortalece-se o sistema acusatório, conferindo ao titular da Ação Penal a decisão sobre denunciar ou arquivar, sendo que, neste último caso, caberia o envio, de ofício, ao órgão revisor, para homologação, ou não, dessa decisão.

Ante o exposto, entende-se que o Projeto do NCPP, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, perderá grande oportunidade de aperfeiçoar, à luz do sistema acusatório, o procedimento de arquivamento da investigação, ao manter, em seu art. 38, o sistema atualmente adotado pelo art. 28, CPP.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Página @blogbrunobarros no facebook

Prezados leitores,


Reativamos as postagens sobre processo penal (principalmente), em uma outra plataforma. Agora, estamos efetuando as postagens em uma página criada no facebook.

Para acessá-la, basta procurar por @blogbrunobarros


quarta-feira, 13 de julho de 2016

As elementares "ocultas" do crime de dispensa indevida de licitação.

O crime de contratar diretamente, por dispensa ou inexigibilidade, encontra-se tipificado no art. 89, da Lei n. 8.666/93:


Art. 89.  Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:


            Observa-se, a partir de uma simples leitura do tipo penal, que a lei não estabelece nenhum elemento subjetivo do tipo (“com a finalidade de .....”, “a fim de obter vantagem...”, “causando dano....”), diferentemente, por exemplo, do crime de fraude em licitação (art. 90), a saber:


Art. 90.  Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação


            Como não poderia ser diferente, o entendimento dos Tribunais Superiores foi, por muito tempo, o de que o crime do art. 89 tratar-se-ia de crime formal, cuja consumação ocorre independentemente da configuração de algum resultado material (vantagem, dano etc...).


            No entanto, a partir de uma decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça na Ação Penal n. 480 (que tratava de uma ex-Prefeita, atual Conselheira do TCE. Surpreendentemente, as guinadas jurisprudências costumam ocorrer em casos com réus importantes e influentes), o posicionamento foi revisto, tanto pelo STJ, quanto pelo STF, passando-se a exigir, para fins de caracterização do crime, (i) a intenção de causar dano e (ii) a efetiva ocorrência do dano.


          Esse entendimento, ao atrelar a ideia da ocorrência do crime à existência de prejuízo ao Erário, no sentido de que, se o preço contratado era compatível com o preço de mercado, não houve dano, para além de criar elementares inexistentes no tipo penal, chancelou a absurda conclusão de que, basta que haja contratação dentro do preço de mercado, para que não haja o crime.


         Curiosa, por sinal, a Ementa do seguinte Acórdão do STJ:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 89  DA  LEI  N. 8.666/1993. DISPENSA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO FORA  DAS  HIPÓTESES  PREVISTAS  EM  LEI.  DOLO  ESPECÍFICO. EFETIVO PREJUÍZO AO ERÁRIO. COMPROVAÇÃO. NECESSIDADE. ATIPICIDADE DA CONDUTA NARRADA NA DENÚNCIA. RECURSO PROVIDO. 1.  Como  cediço,  a jurisprudência desta Corte Superior acompanha o entendimento do Pleno do Supremo Tribunal Federal (Inq. n. 2.482/MG, julgado  em 15/9/2011),  no  sentido de que a consumação do crime do art.   89   da  Lei  n. 8.666/1993  exige  a  demonstração  do  dolo específico, ou seja, a intenção de causar dano ao erário e a efetiva ocorrência  de  prejuízo  aos  cofres públicos, malgrado ausência de disposições legais acerca dessa elementar. Precedentes. (...) (STJ, RHC35598, Rel. Min. Ribeiro Dantas, p.15/04/2016)


            Um exemplo bem claro demonstra o equívoco desta interpretação.


            Tício é Prefeito do Município X. Tício é empresário do ramo de venda de veículos, possuindo, juntamente com seus familiares, a empresa Y, sediada naquele Município. No curso de seu mandato, Tício vislumbra a necessidade de renovação da frota de veículos do Município, razão pela qual determina a realização de uma pesquisa de preços, constatando-se que o veículo custa em torno de R$ 50.000,00. Com base nessas informações, Tício mantém contato com os seus familiares e propõe que a empresa Y, de sua propriedade, forneça diretamente os veículos, pelo preço de R$ 49.000,00, sem que esteja configurada qualquer situação de dispensa ou inexigibilidade.


  Seguindo a lógica do STF e do STJ, Tício, Prefeito do Município X, que contratou diretamente a sua própria empresa, não cometeu o crime de dispensar, fora das hipóteses legais, licitação, haja vista que não restou caracterizada a intenção de causar dano, muito menos a efetiva ocorrência de dano ao Erário.


 Alguém acha que essa é a conclusão adequada?


A falha principal do posicionamento que exige tais “elementares” é restringir o fundamento da licitação à busca pela melhor proposta, esquecendo-se, dessa forma, que a licitação também almeja fazer valer princípios constitucionais outros, tais como a impessoalidade,  moralidade e a isonomia, permitindo, assim como deve ocorrer em uma República, que todos tenham possibilidade de concorrer, em igualdade de condições, para contratar com o Poder Público.


Em boa hora, e renovando as esperanças de uma nova reviravolta jurisprudencial, o STF, no julgamento da Ação Penal 971, de Relatoria do Ministro Edson Fachin, decidiu sem sentido contrário, enfatizando que o crime de dispensar licitação é meramente formal. A notícia pode ser lida AQUI.


Assinalou-se que:


“Em relação ao crime de dispensa indevida de licitação, o ministro Fachin ressaltou a natureza formal do delito, não sendo necessária demonstração de efetivo prejuízo para tipificar a conduta. Destacou não ser possível que o administrador escolha quem vai efetuar determinada obra, ainda que fique provado que o poder público não fosse receber melhor proposta, pois a exigência de licitação para a contratação pelo poder público tem como objetivo de preservar bens maiores que apenas eventuais prejuízos ao erário.







domingo, 19 de junho de 2016

BOA-FÉ OBJETIVA E O PROCESSO PENAL


É praxe que, quando alvo de investigação ou Denúncia, a pessoa, sobretudo quando se trata de alguém com notoriedade social, p.ex, um político, mencione que esteja disposto a colaborar com a Justiça, a fim de provar a sua inocência. Infelizmente, não é preciso ter tanta experiência na seara criminal para se constatar que o discurso é, como se diz, da “boca para fora”, pois, a bem da verdade, a realidade do nosso processo penal é pródiga em manobras defensivas procrastinatórias, protelatórias e contraditórias, que visam, muito longe de permitir que seja proferida uma decisão, a evita-la, ou a prolonga-la ao máximo. Costumou-se designar este comportamento de advocacia das nulidades.

Qualquer oposição ou manifestação contrária a este tipo de comportamento, ou ainda, qualquer tentativa de coibi-lo, encontra forte resistência no discurso de que se está apenas a exercer o direito constitucional à ampla defesa.

Em sendo assim, é de se questionar: ainda que ampla, a defesa é absoluta e ilimitada? Tudo é válido em nome da ampla defesa? A boa fé processual, expressamente reconhecida no Novo Código de Processo Civil (arts. 5º e 6º), estende-se ao processo penal? Em caso negativo, por quê não? Em caso positivo, de que maneira boa-fé processual e ampla defesa são conciliáveis?

A fim de apresentar a nossa opinião sobre estes questionamentos, relataremos três situações comuns, a saber:

(i) a defesa arrola diversas testemunhas, notadamente autoridade políticas (que seguem rito próprio de arguição), domiciliadas em várias cidades de diversos Estados e, até mesmo, residentes no exterior, sem especificar como tais pessoas poderiam contribuir com os fatos. O Juízo indefere a produção das provas. Em sede recursal ou em Habeas Corpus, a defesa suscita a nulidade da decisão, por ofensa ao princípio da ampla defesa.

(ii) a defesa compromete-se a trazer consigo para a audiência, independentemente de intimação, as suas testemunhas. Por ocasião do ato, menciona que não foi possível trazê-las, pugnando pela redesignação da audiência e substituição destas testemunhas, o que é indeferido. Em sede recursal ou em Habeas Corpus, a defesa suscita a nulidade da decisão, por ofensa ao princípio da ampla defesa.

(iii) réu devidamente citado em seu endereço, muda-se sem comunicar ao Juízo, razão pela qual o processo segue sem a sua presença (art. 367, CPP), não sendo realizado o seu interrogatório. Em sede recursal ou em Habeas Corpus, a defesa suscita a nulidade da decisão, por ofensa ao princípio da ampla defesa, argumentando que o Estado não adotou todas as diligências possíveis para localizá-lo.

Pois bem. O princípio da boa-fé processual encontrou amparo expresso no Novo Código de Processo Civil. Nada obstante isto, é possível extrair o seu fundamento primário na própria Constituição Federal, especificamente na cláusula do devido processo legal, haja vista que o processo deve caminhar sempre adiante, devendo as partes colaborarem e contribuírem para que o procedimento avance e seja possível a resolução do mérito da causa.

Trata-se de norma de conduta, ou comportamento, direcionada a estabelecer deveres de lealdade, informação e cooperação aplicável ao Juízo e às partes. Diferentemente da boa-fé subjetiva, focada na intenção ou na vontade da pessoa, a boa-fé objetiva é pragmática, preocupa-se com o comportamento efetivo, independentemente da existência, ou não, de alguma má intenção.

Não há qualquer razão para limitar a aplicação do dever processual de as partes agirem conforme a boa-fé objetiva apenas ao processo civil, no qual, via de regra, os interesses são meramente econômicos e disponíveis, e não ao processo penal, no qual estão em jogo, de um lado, a liberdade individual do réu, e, de outro, a ofensa a variados bens jurídicos tutelados pelo Estado (vida, liberdade, patrimônio, meio ambiente etc...). Como dito, trata-se de princípio com envergadura constitucional, portanto, devendo as normas processuais serem lidas, ou relidas, à luz dos dispositivos constitucionais.

A própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de consolidar esta conclusão, ao analisar casos semelhantes às situação acima narradas, senão vejamos:

HABEAS CORPUS. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. DEPUTADO ESTADUAL. DISPENSA ILEGAL DE LICITAÇÃO E PECULATO. NULIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. INDEFERIMENTO MOTIVADO DE DILIGÊNCIAS. DISCRICIONARIEDADE DO JUIZ. ARTIGO 89 DA LEI N. 8.666/93. EXAME PERICIAL. PRESCINDIBILIDADE. PROVA EMPRESTADA. CONTRADITÓRIO NOS PRESENTES AUTOS. PARTICIPAÇÃO NA PRODUÇÃO PERANTE O PROCESSO DE ORIGEM. INÉRCIA DA DEFESA DEVIDAMENTE INTIMADA PARA O ATO. ARTIGO 565 DO CPP. NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. ACESSO À INTEGRALIDADE DE AUTOS DE INQUÉRITO CIVIL E DE REQUISIÇÃO DE DOCUMENTOS PERANTE O TRIBUNAL DE CONTAS. INDEFERIMENTO JUSTIFICADO. MODIFICAÇÃO. INVIABILIDADE. REVOLVIMENTO DE PROVAS. DESNECESSIDADE DE TRÂNSITO EM JULGADO DO PROCESSO ORIGINÁRIO PARA TRASLADO DE PEÇAS. INVESTIGAÇÕES E AÇÕES DE NATUREZA CÍVEIS PRESIDIDAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. INEXISTÊNCIA. DESNECESSIDADE DE ACOMPANHAMENTO DAS DILIGÊNCIAS PELA CORTE A QUO. RÉUS COM ADVOGADOS DIFERENTES. PRAZO EM DOBRO. NÃO INCIDÊNCIA DAS DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INDEFERIMENTO DAS DILIGÊNCIAS. NÃO DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. ORDEM DENEGADA. 1. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que "não se acolhe alegação de nulidade por cerceamento de defesa, em função do indeferimento de diligências requeridas pela defesa, pois o magistrado, que é o destinatário final da prova, pode, de maneira fundamentada, indeferir a realização daquelas que considerar protelatórias ou desnecessárias ou impertinentes" (REsp. 1.519.662/DF, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, j. em 18/8/2015, DJe 1/9/2015). (....) (STJ, HC35763, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, p. 01/06/16)



RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ARTIGO 183 DA LEI N. 9.472/97. OITIVA DE TESTEMUNHA DA DEFESA. INDEFERIMENTO. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. RÉU E DEFENSOR QUE SE COMPROMETERAM A APRESENTAR TESTEMUNHAS INDEPENDENTEMENTE DE INTIMAÇÃO. ARTIGO 565 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. RECURSO IMPROVIDO. 1. "Uma vez assumido pela defesa o compromisso de apresentação espontânea de suas testemunhas na audiência, eventual ausência configura verdadeira desídia defensiva, não podendo, portanto, o indeferimento dos pedidos de substituição do rol e de realização de nova audiência serem considerados como cerceamento de defesa" (HC 117.952/PB. Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 27/05/2010, DJe 28/06/2010). 2. A declaração de nulidade a que tenha dado causa ou para a qual tenha a parte contribuído, viola o princípio do nemo auditur propriam turpitudinem allegans e a disposição do artigo 565 do Código de Processo Penal. 3. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento. (STJ, RHC40851, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, p.09/03/2016)

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. 1. CRIME DE HOMICÍDIO. INTIMAÇÃO PARA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO. RECORRENTE NÃO ENCONTRADO. APLICAÇÃO DA DISCIPLINA DO ART. 267 DO CPP. 2. NECESSIDADE DE INFORMAR A ALTERAÇÃO DO ENDEREÇO. VENIR CONTRA FACTUM PROPRIUM. PRECEDENTES. 3. RECURSO EM HABEAS CORPUS IMPROVIDO. 1. Embora o recorrente tivesse plena consciência de que contra ele havia um processo criminal em curso, mudou-se de endereço, sem comunicar à justiça, razão pela qual não foi encontrado para ser intimado da audiência de instrução, debates e julgamento. Dessarte, incide no caso dos autos a disciplina do art. 367 do Código de Processo Penal, o qual dispõe que "o processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo". 2. Não pode ser atribuído ao judiciário o não esgotamento dos meios para encontrá-lo, pois, sabendo do processo em curso contra si, tinha o dever de manter seu endereço atualizado. Ademais, é entendimento do Superior Tribunal de Justiça que a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com sua anterior conduta. Portanto, reconhecer eventual nulidade no caso seria inadequado no plano da ética processual, por implicar violação do princípio da boa-fé objetiva, na dimensão venire contra factum proprium. 2. Recurso em habeas corpus improvido. (STJ, RHC49159, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, p. 28/03/16)



Portanto, a primeira conclusão que podemos extrair da aplicação da boa-fé no processo penal é a descaracterização de supostas situações de nulidade suscitadas pela defesa. Em outras palavras, o comportamento processual da defesa advoga no sentido contrário do seu pedido de reconhecimento do suposto vício.

Avançando, ainda nas hipóteses em que tenha ocorrido algum vício processual, a boa-fé processual impõe às partes o dever de comparecer em Juízo e suscitá-lo na primeira oportunidade em que dele tomar conhecimento, ou, pelo menos, em prazo razoável, sob pena de preclusão. Não se coaduna a boa fé processual com a prática de “guardar” uma tese de nulidade para argui-la em um momento processual futuro, objetivando causar o maior prejuízo possível à marcha processual e, com isso, maximizar a possibilidade da configuração da prescrição retroativa, assim como o próprio trânsito em julgado.

Sobre o tema, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento acerca da abusividade da “nulidade de algibeira”, ou seja, aquela matéria que, nada obstante pudesse ter sido suscitada há muito tempo pela defesa – vez que de seu conhecimento -, é guardada como um trunfo para ser arguida apenas lá na frente. Por todos, citamos o AgRg no REsp 1391066, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, p. 19/11/05.

Em caso paradigmático, o STJ refutou a tese de nulidade em virtude da ausência de intimação da defesa para constituir novo advogado, nomeando-se, de logo, a Defensoria Pública para representa-lo, sob o fundamento de que a ausência de intimação teria ocorrido em 1992, enquanto que a nulidade só teria sido suscitada, em sede de Habeas Corpus, em 2005, doze anos depois, e que os réus desapareceram, o que impossibilitaria qualquer tentativa de intimá-los, senão vejamos:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO, ESPECIAL OU DE REVISÃO CRIMINAL. ESTUPRO. NULIDADE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NOMEAÇÃO DE DEFENSOR PÚBLICO SEM INTIMAÇÃO DO PACIENTE. INOCORRÊNCIA. INÉRCIA DA DEFESA. PRECLUSÃO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. (...) 3. Não se vislumbra qualquer ilegalidade na decretação de revelia com a conseqüente nomeação de Defensor Público, quando, devidamente intimados, a defesa e o paciente não compareceram à audiência. 4. O alegado cerceamento de defesa decorrente da nomeação da Defensoria Pública teria ocorrido em 1992, sendo argüido em sede do presente habeas corpus apenas no ano de 2005, ou seja, cerca de 12 anos após a ocorrência da nulidade. Dessa forma, não há como reconhecer a nulidade, uma vez operada a preclusão. Precedentes. 5. Habeas corpus não conhecido. (STJ, HC44104, Rel. Min. Nefi Cordeiro, p. 17/03/05)

Com efeito, não nos parece comportamento compatível com o “devido processo leal” a defesa, mesmo tendo tomado ciência de uma possível nulidade, deixar de comunica-la, na primeira oportunidade possível, ao Juiz, a fim de que, se for o caso, seja sanada. Muito pelo contrário, realça um comportamento inadequado e deliberadamente intencionado a tumultuar o andamento processual com um possível reconhecimento futuro que, como consequência, ensejaria a anulação de todos os atos processuais posteriores e decorrentes do ato nulo.

Importante destacar, por fim, que a alteração do regime das nulidades processuais, notadamente a fixação de prazos adequados para suscitá-las, é uma das dez medidas propostas pelo Ministério Público Federal, que deu origem a Projetos de Lei que, atualmente, encontram-se em tramitação no Congresso Nacional.



A título de conclusão, estamos absolutamente convencidos de que o princípio da boa-fé processual tem total aplicação no processo penal, sem que isso caracterize ofensa ou limitação à ampla defesa, posto não ser possível confundir ampla defesa com impunidade. A defesa pode muito, mas não pode tudo. O processo precisa caminhar até o seu desfecho e a ampla defesa não pode justificar medidas defensivas em sentido diametralmente oposto.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Efeitos práticos do NCPC sobre o processo penal (8)


Prosseguindo na análise a respeito dos efeitos do NCPC sobre o processo penal, importante relatar recente decisão do STJ no tocante ao prazo para interposição do Agravo Regimental previsto no art. 39, da Lei n. 8.038/90.

Qual o problema?

Conforme o art. 39, da Lei n. 8.038/90, o prazo para interpor o Agravo Regimental é de 05 dias. No entanto, conforme o NCPC, o prazo para interpor Agravo Regimental/Interno passou de 05 para 15 dias.

Em sendo assim, qual o prazo a ser aplicado no processo penal?

Conforme decidido pelo STJ, no AgR na Reclamação 30.714, o art. 39, da Lei n. 8.038/90, diferentemente de outros dispositivos da mesma Lei, os quais foram expressamente revogados pelo NCPC (tema já tratado neste blog), permanece vigente e aplicável ao processo penal, senão vejamos:


PROCESSUAL CIVIL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECLAMAÇÃO. RECURSO QUE IMPUGNA DECISÃO MONOCRÁTICA DE RELATOR PROFERIDA APÓS A ENTRADA EM VIGOR DO NOVO CPC. PRAZO AINDA REGIDO PELO ART. 39 DA LEI 8.038/90. INTEMPESTIVIDADE. 1. O agravo contra decisão monocrática de Relator, em controvérsias que versam sobre matéria penal ou processual penal, nos tribunais superiores, não obedece às regras no novo CPC, referentes à contagem dos prazos em dias úteis (art. 219, Lei 13.105/2015) e ao estabelecimento de prazo de 15 (quinze) dias para todos os recursos, com exceção dos embargos de declaração (art. 1.003, § 5º, Lei 13.105/2015). 2. Isso porque, no ponto, não foi revogada, expressamente, como ocorreu com outros de seus artigos, a norma especial da Lei 8.038/90 que estabelece o prazo de cinco dias para o agravo interno. (…)

terça-feira, 29 de março de 2016

Efeitos práticos do NCPC sobre o processo penal (7) - A superação da Súmula 699, STF

Uma questão extremamente comum nas provas de  concurso era o prazo para a interposição do então Agravo de Instrumento contra decisão que inadmitiu Recurso Especial/Extraordinário.

Quanto a este tema, o STF editou a Súmula 699, a saber: 

"O PRAZO PARA INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO, EM PROCESSO PENAL, É DE CINCO DIAS, DE ACORDO COM A LEI 8038/1990, NÃO SE APLICANDO O DISPOSTO A RESPEITO NAS ALTERAÇÕES DA LEI 8950/1994 AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL."

Este prazo estava previsto no art. 28, da Lei n. 8.038/90. O STF entendia que esta norma era especial à previsão do CPC, cujo prazo fixado era de 10 dias. 

Entretanto, o NCPC revogou expressamente o art. 28, da Lei n. 8.038/90, de modo que o agravo para "destrancar" Recurso Especial/Extraordinário passa a ser regulado pelo próprio NCPC, em seu art. 1042, c/c art. 3º, CPP. 

Qual o prazo, então, para a interposição do Agravo em processo penal? 

O prazo para interposição de agravo é de 15 dias, na forma do art. 103, §5º, NCPC, que é  prazo geral para qualquer recurso no NCPC, à exceção dos Embargos de Declaração.

Portanto, com o advento do NCPC, fica superada a Súmula 699, STF.