domingo, 31 de janeiro de 2016

Algumas reflexões sobre a jurisprudência nacional e a vedação da denúncia anônima.

Sabe-se que a jurisprudência do STF e do STJ não admite a instauração de investigação criminal com base em denúncia anônima. Exige-se, inicialmente, a realização de diligências prévias com o intuito de aferir a verossimilhança de seu conteúdo para, só então, instaurar investigação ex officio. Citamos:

Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. BUSCA E APREENSÃO DETERMINADA EXCLUSIVAMENTE COM BASE EM DENÚNCIA ANÔNIMA. NÃO OCORRÊNCIA. PERSECUÇÃO PENAL POR CRIMES TRIBUTÁRIOS E CONEXOS ANTES DO LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO DEFINITIVO. VIABILIDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DO DECRETO DE BUSCA E APREENSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA. 1. A jurisprudência do STF é unânime em repudiar a notícia-crime veiculada por meio de denúncia anônima, considerando que ela não é meio hábil para sustentar, por si só, a instauração de inquérito policial. No entanto, a informação apócrifa não inibe e nem prejudica a prévia coleta de elementos de informação dos fatos delituosos (STF, Inquérito 1.957-PR) com vistas a apurar a veracidade dos dados nela contidos. 2. Nos termos da Súmula Vinculante 24, a persecução criminal nas infrações contra a ordem tributária (art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90) exige a prévia constituição do crédito tributário. Entretanto, não se podendo afastar de plano a hipótese de prática de outros delitos não dependentes de processo administrativo não há falar em nulidade da medida de busca e apreensão. É que, ainda que abstraídos os fatos objeto do administrativo fiscal, o inquérito e a medida seriam juridicamente possíveis. 3. Não carece de fundamentação idônea a decisão que, de forma sucinta, acolhe os fundamentos apresentados pelo Órgão ministerial, os quais narram de forma pormenorizada as circunstâncias concretas reveladoras da necessidade e da adequação da medida de busca e apreensão. 4. Ordem denegada. (STF, HC107362, Rel. Min. Teori Zavascki, p. 02/03/15)

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PECULATO, CORRUPÇÃO, FRAUDE EM LICITAÇÕES, FALSIDADE IDEOLÓGICA E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. DENÚNCIA IMPUTANDO A PRÁTICA DE ILÍCITOS. AUTORIA IDENTIFICADA. AUSÊNCIA DE ASSINATURA. IMPOSSIBILIDADE DE SE CONSIDERAR A DELAÇÃO ANÔNIMA. REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PRELIMINARES PARA A APURAÇÃO DA VERACIDADE DAS INFORMAÇÕES. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. Esta Corte Superior de Justiça, com supedâneo em entendimento adotado por maioria pelo Plenário do Pretório Excelso nos autos do Inquérito n. 1957/PR, tem entendido que a notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não é idônea para a instauração de inquérito policial ou deflagração da ação penal, prestando-se, contudo, a embasar procedimentos investigatórios preliminares em busca de indícios que corroborem as informações da fonte oculta, os quais tornam legítima a persecução criminal estatal. (...) (STJ, RHC 44971, Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo, p. 01/09/15)

Porém, a mesma jurisprudência admite a possibilidade de a Denúncia estar embasada em elementos de informação produzidos no curso de Inquérito Civil Público, a saber:

EMENTA DENÚNCIA. PECULATO. ART. 312 DO CÓDIGO PENAL. PRELIMINAR DE NULIDADE DAS PROVAS COLHIDAS EM INQUÉRITO CIVIL. PRELIMINAR REJEITADA. CONDUTA ATÍPICA. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. 1. O Ministério Público pode oferecer denúncia com base em elementos colhidos no âmbito de inquéritos civis instaurados para apurar ilícitos administrativos no bojo dos quais haja elementos aptos a embasar imputação penal. Precedentes. 2. O foro por prerrogativa de função não se estende às ações civis públicas por improbidade administrativa nem aos inquéritos civis conduzidos por integrantes do Ministério Público (art. 129, III, da CF), ainda que os fatos apurados possam ter repercussão penal. Preliminar rejeitada. 3. A utilização dos serviços custeados pelo erário por funcionário público no seu interesse particular não é conduta típica de peculato (art. 312, do Código Penal), em razão do princípio da taxatividade (art. 5º, XXXIX, da Constituição da República). Tipo que exige apropriação ou desvio de dinheiro, valor ou outro bem móvel, o que na hipótese não ocorre. 4. Diferença entre usar funcionário públicoem atividade privada e usar a Administração Pública para pagar salário de empregado particular, o que configura peculato. Caso concreto que se amolda à primeira hipótese, conduta reprovável, porém atípica. 5. Denúncia rejeitada. (STF, Inq. 3776, Rel. Min. Rosa Weber, p. 04/11/14)

HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DE RECURSO ORDINÁRIO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E PECULATO. VEREADORES. USO DE VERBA PÚBLICA EM PROVEITO PESSOAL. ACUSAÇÃO BASEADA EM INVESTIGAÇÃO CONDUZIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. ELEMENTOS COLIGIDOS EM INQUÉRITO CIVIL PÚBLICO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE PATENTE. NÃO CONHECIMENTO. 1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem como substitutiva de recurso ordinário. 2. O inquérito policial não é indispensável ao oferecimento da denúncia, podendo o Ministério Público formar sua convicção à guisa de outros elementos. 3. Hipótese em que a denúncia se baseia em inquérito civil público, no bojo do qual foram coligidas provas para embasar a persecução penal, não havendo falar, portanto, em ilegalidade. Precedentes desta Corte e do STF. 4. Habeas corpus não conhecido. (STJ, HC227946, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, p. 07/04/14).
 
Prosseguindo, esta mesma jurisprudência admite que o Inquérito Civil Público seja instaurado com base em representação apócrifa, senão vejamos:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CERCEAMENTO DE DEFESA. NECESSIDADE DE PRODUÇÃO DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. PRECEDENTES. UTILIZAÇÃO DE PROVA EMPRESTADA. RESPEITO AOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. SÚMULA 83/STJ. INQUÉRITO CIVIL. ABERTURA COM BASE EM DENÚNCIA ANÔNIMA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. SÚMULA 83/STJ. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. PRORROGAÇÃO DO PRAZO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO STF. PARTICIPAÇÃO DO MP EM TODOS OS PROCEDIMENTOS DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ. DOSIMETRIA DAS PENAS. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. DESPICIENDO A ANÁLISE QUANDO APLICADO O ENTENDIMENTO PACÍFICO PELA ALÍNEA "A" DO PERMISSIVO CONSTITUCIONAL. (...) 4. Esta Corte já se manifestou no sentido de que a denúncia anônima não é óbice à instauração de inquérito civil por parte do Ministério Público. A instauração de inquérito civil é prerrogativa constitucionalmente assegurada ao Parquet, a quem compete a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. 5. Nesse diapasão, a legislação atinente ao Ministério Público autoriza sua atuação ante o conhecimento de fatos que ensejem sua intervenção, irrelevante tratar-se de denúncia anônima. Precedentes. Súmula 83/STJ. (...) (STJ, REsp 1447157, Rel. Min. Humberto Martins, p. 20/11/15)

Portanto, se a Denúncia pode estar alicerçada em Inquérito Civil Público, e se este pode ser instaurado a partir de denúncia anônima, é possível concluir que, ou a jurisprudência erra ao não admitir denúncia anônima como apta a desencadear a investigação criminal, ou erra ao admitir denúncia anônima como apta a desencadear um Inquérito Civil, que, por sua vez, pode embasar uma Denúncia.
           
A nosso sentir, o erro ocorre na primeira das hipóteses. Não há justificativa válida para concluir-se que a denúncia anônima não possa, por si só, desencadear uma investigação criminal, exigindo-se diligência preliminar direcionada à constatação de sua verossimilhança.

O argumento técnico utilizado é o de que a Constituição Federal veda o anonimato (art. 5º,  IV, CF). Porém, esta vedação está intimamente relacionada à possibilidade do direito de resposta e à reparação dos danos materiais, morais ou à imagem da pessoa objeto da manifestação (art. 5º, V, CF). Não nos parece crível que esta vedação do anonimato, com cunho nitidamente civilista, impeça que a denúncia anônima possa desencadear a atuação da Polícia ou do Ministério Público. Além disso, seria sobrepor, de forma apriorística, interesse particular ao interesso coletivo da apuração de fatos ilícitos ou criminosos.

Ademais, este raciocínio peca ao associar a denúncia anônima a uma denúncia (i) em relação a uma pessoa específica; e/ou (2) sem qualquer tipo de comprovação.

Com efeito, às vezes, a denúncia não se direciona a uma pessoa determinada. Por exemplo, alguém pode encaminhar denúncia à Polícia afirmando que um determinado imóvel abandonado, ou um terreno baldio qualquer, é local de tráfico de drogas e prostituição infantil. Não se está, com isso, a imputar conduta a determinada pessoa. Indaga-se, então, de que modo esta denúncia anônima ofenderia a vedação do anonimato? 

Por outro lado, nem sempre a denúncia anônima dirá simplesmente que Tício é assaltante de banco e ponto final. Em nossa experiência prática, podemos afirmar que é bastante comum que a representação apócrifa seja acompanhada de documentos que permitam inferir a verossimilhança de seu conteúdo.

Exemplificativamente, podemos citar uma representação que mencione que, no Município X, uma determinada licitação foi vencida de forma fraudulenta pela empresa Y, cujo sócio é laranja do Prefeito, já encaminhando informações extraídas do Portal da Transparência a respeito da licitação (indicando número, objeto, empresas participantes etc...) e dados que apontem que o sócio recebe o benefício social do Bolsa Família ou que trabalha para a família do gestor (motorista, p.ex).

Nessa hipótese, essa documentação já não se fez acompanhada de indícios mínimos de verossimilhança? Por qual razão não poderia ser instaurado Inquérito Policial e se exigiria diligências preliminares?

Por fim, a exigência ofende o princípio da eficiência administrativa, demonstrando-se formalismo exacerbado. É que a denúncia anônima não será descartada. Na verdade, ela ensejará a adoção de diligências preliminares a serem efetuadas pelo órgão público e devidamente documentadas e registradas.

Qual, então, a diferença entre instaurar um Inquérito Policial e efetuar uma diligência in loco, p.ex, e efetuar estas diligência in loco e, após, instaurar Inquérito Policial? Não estava o mesmo órgão público, valendo-se de seus servidores públicos, investigando um fato? A nomenclatura que se dê ao procedimento administrativo (Inquérito Policial, Verificação Preliminar de Informação etc...) é fator determinante para se definir a licitude, ou não, da prova?

Em arremate, vê-se que a suposta impossibilidade de a denúncia anônima autorizar, por si só, a instauração de investigação criminal é mais um exemplo do denominado “garantismo hiperbólico monocular”, que vê nulidades e ilicitudes onde elas não existem.  

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A Lei n. 13.245/2016 tornou obrigatória a defesa técnica na investigação?

Prezados,

A recente Lei n. 13.245/2016, mais especificamente o seu art. 7º, XXI, já está sendo alvo de bastante discussão. Não é nosso objetivo esgotar o tema, mas apenas transmitir a nossa visão a respeito do que realmente tratou o dispositivo em questão, ora reproduzido:

Art. 7º São direitos do advogado:

XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:

Vamos direto ao ponto central da controvérsia: O mencionado dispositivo estabeleceu a obrigatoriedade da defesa técnica em fase investigativa? Em outras palavras, a partir de então, nenhum depoimento, interrogatório, declaração pode ser prestada pela pessoa alvo de investigação administrativa ou criminal sem que ela esteja acompanhada de um advogado?

Antes de responder esta indagação, acho relevante mencionar que o texto normativo pode comportar mais de uma interpretação possível, sendo natural, portanto, que existam opiniões diferentes sobre a mesma coisa. No entanto, não podemos cometer o equívoco de interpretar uma norma da forma que nós gostaríamos que ela tivesse sido feita.

Faço essa ressalva porque, apesar de discordar veementemente, respeito opiniões de que seria constitucional, convencional, justo, ético ou qualquer outro adjetivo, a presença obrigatória do defensor técnico, especificamente em investigações criminais. Mas, como dito, estou convencido de que não foi esta a intenção da alteração legislativa.

A partir de uma mera análise do enquadramento da norma, já penso ser possível concluir que ela tratou, muito mais da atuação do advogado, do que da obrigatoriedade da ampla defesa na investigação. Com efeito, cabe destacar que a legislação modificada foi o Estatuto da Advocacia, e não o Código de Processo Penal.

Perceba-se que o art. 7º diz ser direito do advogado assistir o seu cliente, não dispondo absolutamente nada acerca da possibilidade, ou não, de investigação envolvendo pessoa que não possua advogado.

A nosso sentir, o objetivo da norma foi apenas de evitar qualquer tipo de embaraço à participação do defensor no interrogatório ou qualquer outro tipo de depoimento durante a fase investigativa. Se a pessoa a depor tiver defensor e manifestar interesse em estar por ele assistido, a autoridade pública não pode impedir a participação do defensor.

Se o objetivo fosse tornar a defesa técnica obrigatória na investigação, bastaria o legislador estipular, no CPP, tal obrigatoriedade, sob pena de nomeação de um defensor dativo, na forma como ocorre no curso da Ação Penal (art. 261, CPP).

Esta também é a opinião de Afrânio Jardim [1], para quem “(...) como já deixei escrito em texto anterior, entendo que a nova regra não tenha trazido o contraditório para o inquérito policial, o que o transformaria em uma primeira fase do processo: juizado de instrução sem juiz !!!!!  O que a nova lei assegura é a assistência jurídica do advogado ao seu cliente, quando convocado a participar de algum ato no procedimento investigatório, com sua presença e aconselhamento, tendo tomado conhecimento do que já foi realizado.”

Comunga desta opinião Márcio André [2], segundo quem “Em minha leitura, o novo inciso XXI do art. 7º não impõe que todos os interrogatórios realizados durante a investigação criminal tenham, obrigatoriamente, a presença de advogado. O que esse dispositivo garantiu foi o direito do advogado de, se assim desejar, se fazer presente no interrogatório do seu cliente e nos demais depoimentos. O inciso acrescenta novo direito ao advogado que, reflexamente, acarreta benefícios ao investigado. O objetivo da Lei não foi o de instituir ampla defesa automática e obrigatória nas investigações criminais, mas sim o de garantir respaldo legal para que os advogados possam melhor exercer suas funções.”

Se o investigado ou o advogado juntar procuração nos autos, a autoridade pública (Delegado, p.ex) deve notificá-lo da data do interrogatório do cliente? Ou basta a notificação do cliente? Seguindo a linha teórica acima adotada, de que não há obrigatoriedade da defesa técnica, penso que a notificação será sempre do investigado, a quem cabe comunicar o ato ao seu advogado para que se faça presente.

E se o investigado for pobre e não puder contratar advogado? A autoridade pública deve nomear Defensor Público ou dativo? Pensamos que não. Uma vez notificado, o investigado pode, querendo, dirigir-se à Defensoria Pública e solicitar a assistência jurídica.

Fincada a nossa opinião sobre a inexistência de obrigatoriedade de defesa técnica na investigação, avançamos com a seguinte indagação: Deve existir defesa técnica obrigatória em investigação?

Em nossa visão, qualquer tipo de investigação tem natureza inquisitorial, no bojo da qual não há sequer acusação. Pelo contrário, a investigação busca colher elementos que permitam, se for o caso, uma acusação com justa causa. Logicamente, é perfeitamente possível falar-se em contraditório e em defesa na investigação, mas em caráter mitigado em atenção à própria essência do procedimento. Por exemplo, é inegável que qualquer investigado terá direito ao silêncio. Mas daí a afirmar que existe ampla defesa na investigação, ou que esta agora se desenvolva em contraditório é uma diferença enorme.

Não se pode querer igualar a defesa na investigação à defesa no processo por uma simples razão: Não existe ampla defesa sem prévia acusação. Somente com a acusação, inicia-se o procedimento em contraditório, no qual o réu terá assegurada a sua ampla defesa, inclusive, se houver necessidade, custeada pelo Estado.

Não se pode cogitar da criação de uma espécie de Ação Penal Preliminar à Ação Penal propriamente dita, tal como a fase inicial do Tribunal do Juri. A própria França, exemplo histórico dos Juizados de Instrução, já se apercebeu que este não é o melhor caminho.

A esse respeito, Vladimir Passos [3] adverte que “O inquérito policial, por si só, já é algo com sabor de passado, contaminado por formalismos típicos do processo judicial. Por exemplo, cartas precatórias impressas, termos de juntada, conclusão, pedidos de prazo etc. Torná-lo contraditório, pois isto é o que resultará da participação de advogado na sua tramitação, é dar-lhe o caráter de uma ação penal preliminar. E depois tudo se repetirá em juízo. E se for processo de júri, de novo no plenário.”

O aperfeiçoamento da investigação passa necessariamente por sua modernização, mediante eliminação de burocracias formais, sobreposição de funções e prática de atos inúteis.

Passa também pela compreensão de que os elementos de informação produzidos na investigação criminal servem apenas para subsidiar uma possível Ação Penal, não podendo ser utilizados para fundamentar a condenação, salvo as provas cautelares, irrepetíveis e antecipadas.


Por tal razão, doutrinadores advogam que os autos da investigação sequer deveriam acompanhar os autos da Ação Penal, posto que, recebida a acusação, cessa a finalidade da investigação, devendo, aí sim, serem produzidas, em Juízo, as provas que levarão à condenação ou à absolvição do réu. Também é esta a razão pela qual se defende a criação do Juiz das Garantias, evitando todo e qualquer contato do Juiz que irá sentenciar com os autos da investigação. 

Reconheça-se, por fim, que o Projeto do Novo Código de Processo Penal prevê a obrigatoriedade da defesa técnica em qualquer interrogatório criminal. 

[1] http://emporiododireito.com.br/tag/afranio-silva-jardim/
[2] http://www.dizerodireito.com.br/2016/01/comentarios-lei-132452016-que-assegura.html
[3] http://www.conjur.com.br/2013-nov-10/segunda-leitura-inquerito-policial-nao-combina-contraditorio

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

O direito ao silêncio e o registro das perguntas não-respondidas.

O direito ao silêncio é uma das garantias asseguradas aos réus e investigados pela Constituição Federal, pelo Código de Processo Penal e também pela Convenção Americana de Direitos Humanos, constituindo uma das aplicações do princípio do nemo tenetur se detegere

Não será esta a ocasião em que trataremos especificamente dele. Na verdade, gostaria de realçar apenas um pequeno aspecto prático que comumente ocorre quando o réu/investigado manifesta-se o seu interesse em exercer este direito, a saber:

Mesmo diante da expressa manifestação do réu/investigado ou de sua defesa técnica no sentido de que exercerá o direito ao silêncio, devem as perguntas serem formuladas e registradas, consignando-se, quanto a elas, que o réu/investigado reservou-se ao silêncio? Ou o depoimento deve ser sumariamente finalizado?

Antes de manifestar a nossa opinião, importa frisar que, na fase policial, é bastante comum que inúmeras perguntas sejam registradas em Termo juntamente com a menção ao fato de o investigado ter permanecido em silêncio.

Da mesma forma, recentemente, vimos na imprensa que vários réus da Operação Lava Jato foram intimados para deporem em uma CPI, e, mesmo diante do expresso exercício do direito ao silêncio, os parlamentares, não só continuaram a fazer perguntas, como também a criticá-los e a ironizá-los por adotar tal posicionamento. Sem dúvidas, eles "jogaram para a platéia"...

Voltando à pergunta, a resposta nos parece que só possa ser negativa.

Com efeito, não há utilidade algum em dar continuidade a um depoimento quando o depoente já sinalizou que irá exercer o direito ao silêncio. Além do dispêndio de recursos humanos e do gasto de tempo desnecessário, o registro das perguntas às quais o investigado/réu não quis responder caracteriza uma forma de pressioná-lo a responder bem como pode influenciar intimamente os atores processuais, especificamente o Ministério Público e o Juiz, incutindo-lhes a ideia de que, se tantas perguntas importantes não foram sequer respondidas, é porque o investigado/réu tem "culpa no Cartório". 

Assim sendo, a boa prática trilha no caminho de que, no início do depoimento, por ocasião do registro do direito ao silêncio, o depoente seja questionado se irá exercer este direito ou se tem interesse em ser questionado. Caso positivo, encerra-se o depoimento. Caso negativo, dá-se prosseguimento, sem prejuízo de que o investigado/réu possa exercer o direito ao silêncio em relação às perguntas que lhes forem formuladas. 

O objetivo é evitar que, restando patente que nenhuma pergunta será respondida, elas continuem sendo formuladas e registradas apenas como forma de pressionar o depoente, ou ainda, influenciar psicologicamente os atores processuais em face do ditado popular de que quem cala consente. 

Por tal razão, em boa hora, foi revogado o art. 191, CPP, que previa que, além de serem consignadas as perguntas não-respondidas, deveriam ser registradas as razões que o depoente tinha para não respondê-las, como se, assim procedendo, não se estivesse a esvaziar a própria essência do direito ao silêncio, transformando o réu/investigado em mero objeto de prova.  












quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

A entrevista reservada antes do interrogatório e a incomunicabilidade dos interrogatórios.


         A entrevista reservada entre réu e defensor encontra previsão legal no art. 185, §5º, CPP c/c art. 7º, III, EAOAB, configurando-se concretização do direito à ampla defesa, justamente por permitir o contato entre a autodefesa e a defesa técnica.

        Em nossas audiências criminais envolvendo múltiplos réus, não é incomum que um dos defensores peça para ter entrevista reservada com seu cliente no interstício compreendido entre o término do interrogatório de um ou mais de um réu e o início de seu interrogatório. Por exemplo, no caso de três corréus, imagine-se a hipótese do advogado do último réu, que acompanhou o interrogatório dos dois primeiros réus, reivindicar a entrevista prévia com seu cliente antes do interrogatório.

       Seria possível conceder tempo para a entrevista pessoal se outros réus já foram interrogados na presença do defensor técnico do réu que ainda irá depor? Ou, noutro sentido, ofenderia a ampla defesa e as prerrogativas do defensor indeferir o pedido de entrevista pessoal nestas circunstâncias?

          O tema ganha relevância em razão da previsão legal de que os interrogatórios são incomunicáveis, isto é, o réu que ainda irá depor não pode acompanhar os interrogatórios antecedentes (art. 191, CPP). Diante deste cenário, como equalizar, de um lado, o direito à entrevista prévia, e, de outro, a incomunicabilidade dos interrogatórios?

Antes de emitir a nossa opinião, pensamos ser  válido mencionar, por oportuno, que a regra da entrevista prévia era, até pouco tempo atrás, de suma importância para a garantia da ampla defesa do réu, haja vista que o interrogatório consubstanciava o primeiro ato instrutório do procedimento penal. Com efeito, até o advento da Lei n. 11.900/2009, o réu era citado para comparecer em Juízo e ser interrogado. Nesse passo, era bastante comum que o primeiro contato entre o réu e o defensor ocorresse no momento do próprio interrogatório, sobretudo quando se tratava de defensor público ou defensor dativo.

Assim sendo, a entrevista pessoal era a oportunidade única de interação entre a autodefesa e a defesa técnica, permitindo, de um lado, que o réu fosse informado a respeito do que seria o interrogatório, seus direitos e garantias (dentre eles, o direito ao silêncio), assim como, de outro lado, que o defensor técnico pudesse conhecer o interrogando e saber qual o fato a ser interrogado, a fim de estabelecer a melhor estratégia defensiva.

Entretanto, após a citada alteração legislativa, o interrogatório passou do início para o final do procedimento, de modo que, atualmente, o réu é citado para apresentar resposta à acusação, o que pressupõe o contato prévio com o seu defensor técnico constituído. Além disso, entre a resposta à acusação e a audiência de instrução e julgamento, na qual será interrogado, passam-se meses ou até anos, sendo certo que durante todo este período o réu e o seu defensor tem totais condições de manter contato entre si.

Como se não bastasse, no próprio dia da audiência, o contato poderá ser absolutamente mantido antes de seu início, assim como durante todos os atos instrutórios que antecedem o interrogatório, especificamente o depoimento pessoal do ofendido e os depoimentos das testemunhas.

Não desconhecemos a particularidade da defesa realizada por defensores públicos ou dativos. Em que pese a dificuldade – ou impossibilidade – de contato por ocasião da apresentação da resposta à acusação, não há dúvidas de que a entrevista prévia poderá, pelo menos, ser realizada antes do início da audiência, bem como poderão, defensor e réu, manter contato durante o curso do ato processual.

Fincadas tais premissas, a nosso sentir, a melhor solução é conceder prazo para a entrevista pessoal dos defensores com os réus após o término das oitivas das testemunhas e antes do início da fase de interrogatório.

Em outras palavras, finalizada a inquirição das testemunhas arroladas pelo MP e pela defesa, o Juiz deve comunicar aos defensores que dará início aos interrogatórios, questionando-lhes se precisam de concessão de prazo para o contato prévio entre eles e seus clientes. Tal medida, além de assegurar o direito à entrevista prévia, não torna inócua a regra da incomunicabilidade entre os interrogatórios.

Seria indisfarçável ingenuidade imaginar outra intenção no interesse do advogado em conversar com seu cliente após ter acesso ao conteúdo dos interrogatórios dos corréus senão a de transmitir-lhe o que ocorreu durante estes interrogatórios, permitindo que um interrogatório influenciasse nos demais, nada obstante o teor do art. 191, CPP e o caráter de meio de prova do interrogatório (embora também seja considerado meio de defesa), bem como criando uma desigualdade de armas dentro do próprio polo defensivo, visto que o réu a ser interrogado por último teria a possibilidade de saber os que corréus disseram, enquanto, p.ex, o primeiro corréu a depor não teria esta oportunidade.