O crime de contratar
diretamente, por dispensa ou inexigibilidade, encontra-se tipificado no art.
89, da Lei n. 8.666/93:
Art. 89. Dispensar
ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de
observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:
Observa-se, a partir de uma simples
leitura do tipo penal, que a lei não estabelece nenhum elemento subjetivo do
tipo (“com a finalidade de .....”, “a fim de obter vantagem...”, “causando
dano....”), diferentemente, por exemplo, do crime de fraude em licitação (art.
90), a saber:
Art. 90. Frustrar
ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter
competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou
para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação
Como
não poderia ser diferente, o entendimento dos Tribunais Superiores foi, por
muito tempo, o de que o crime do art. 89 tratar-se-ia de crime formal, cuja
consumação ocorre independentemente da configuração de algum resultado material
(vantagem, dano etc...).
No
entanto, a partir de uma decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça na
Ação Penal n. 480 (que tratava de uma ex-Prefeita, atual Conselheira do TCE.
Surpreendentemente, as guinadas jurisprudências costumam ocorrer em casos com
réus importantes e influentes), o posicionamento foi revisto, tanto pelo STJ,
quanto pelo STF, passando-se a exigir, para fins de caracterização do crime,
(i) a intenção de causar dano e (ii) a efetiva ocorrência do dano.
Esse
entendimento, ao atrelar a ideia da ocorrência do crime à existência de prejuízo
ao Erário, no sentido de que, se o preço contratado era compatível com o preço
de mercado, não houve dano, para além de criar elementares inexistentes no tipo
penal, chancelou a absurda conclusão de que, basta que haja contratação dentro
do preço de mercado, para que não haja o crime.
Curiosa,
por sinal, a Ementa do seguinte Acórdão do STJ:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 89 DA LEI N. 8.666/1993. DISPENSA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES PREVISTAS EM LEI. DOLO ESPECÍFICO. EFETIVO PREJUÍZO AO ERÁRIO. COMPROVAÇÃO. NECESSIDADE. ATIPICIDADE DA CONDUTA NARRADA NA DENÚNCIA. RECURSO PROVIDO. 1. Como cediço, a jurisprudência desta Corte Superior acompanha o entendimento do Pleno do Supremo Tribunal Federal (Inq. n. 2.482/MG, julgado em 15/9/2011), no sentido de que a consumação do crime do art. 89 da Lei n. 8.666/1993 exige a demonstração do dolo específico, ou seja, a intenção de causar dano ao erário e a efetiva ocorrência de prejuízo aos cofres públicos, malgrado ausência de disposições legais acerca dessa elementar. Precedentes. (...) (STJ, RHC35598, Rel. Min. Ribeiro Dantas, p.15/04/2016)
Um
exemplo bem claro demonstra o equívoco desta interpretação.
Tício
é Prefeito do Município X. Tício é empresário do ramo de venda de veículos,
possuindo, juntamente com seus familiares, a empresa Y, sediada naquele
Município. No curso de seu mandato, Tício vislumbra a necessidade de renovação da
frota de veículos do Município, razão pela qual determina a realização de uma
pesquisa de preços, constatando-se que o veículo custa em torno de R$
50.000,00. Com base nessas informações, Tício mantém contato com os seus
familiares e propõe que a empresa Y, de sua propriedade, forneça diretamente os
veículos, pelo preço de R$ 49.000,00, sem que esteja configurada qualquer
situação de dispensa ou inexigibilidade.
Seguindo a lógica do STF e
do STJ, Tício, Prefeito do Município X, que contratou diretamente a sua própria
empresa, não cometeu o crime de dispensar, fora das hipóteses legais,
licitação, haja vista que não restou caracterizada a intenção de causar dano,
muito menos a efetiva ocorrência de dano ao Erário.
Alguém acha que essa é a
conclusão adequada?
A falha principal do
posicionamento que exige tais “elementares” é restringir o fundamento da
licitação à busca pela melhor proposta, esquecendo-se, dessa forma, que a
licitação também almeja fazer valer princípios constitucionais outros, tais
como a impessoalidade, moralidade e a isonomia,
permitindo, assim como deve ocorrer em uma República, que todos tenham
possibilidade de concorrer, em igualdade de condições, para contratar com o
Poder Público.
Em boa hora, e renovando as
esperanças de uma nova reviravolta jurisprudencial, o STF, no julgamento da
Ação Penal 971, de Relatoria do Ministro Edson Fachin, decidiu sem sentido
contrário, enfatizando que o crime de dispensar licitação é meramente formal. A
notícia pode ser lida AQUI.
Assinalou-se que:
“Em relação ao crime de dispensa indevida de licitação, o ministro Fachin ressaltou a natureza formal do delito, não sendo necessária demonstração de efetivo prejuízo para tipificar a conduta. Destacou não ser possível que o administrador escolha quem vai efetuar determinada obra, ainda que fique provado que o poder público não fosse receber melhor proposta, pois a exigência de licitação para a contratação pelo poder público tem como objetivo de preservar bens maiores que apenas eventuais prejuízos ao erário.”