domingo, 31 de janeiro de 2016

Algumas reflexões sobre a jurisprudência nacional e a vedação da denúncia anônima.

Sabe-se que a jurisprudência do STF e do STJ não admite a instauração de investigação criminal com base em denúncia anônima. Exige-se, inicialmente, a realização de diligências prévias com o intuito de aferir a verossimilhança de seu conteúdo para, só então, instaurar investigação ex officio. Citamos:

Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. BUSCA E APREENSÃO DETERMINADA EXCLUSIVAMENTE COM BASE EM DENÚNCIA ANÔNIMA. NÃO OCORRÊNCIA. PERSECUÇÃO PENAL POR CRIMES TRIBUTÁRIOS E CONEXOS ANTES DO LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO DEFINITIVO. VIABILIDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DO DECRETO DE BUSCA E APREENSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA. 1. A jurisprudência do STF é unânime em repudiar a notícia-crime veiculada por meio de denúncia anônima, considerando que ela não é meio hábil para sustentar, por si só, a instauração de inquérito policial. No entanto, a informação apócrifa não inibe e nem prejudica a prévia coleta de elementos de informação dos fatos delituosos (STF, Inquérito 1.957-PR) com vistas a apurar a veracidade dos dados nela contidos. 2. Nos termos da Súmula Vinculante 24, a persecução criminal nas infrações contra a ordem tributária (art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90) exige a prévia constituição do crédito tributário. Entretanto, não se podendo afastar de plano a hipótese de prática de outros delitos não dependentes de processo administrativo não há falar em nulidade da medida de busca e apreensão. É que, ainda que abstraídos os fatos objeto do administrativo fiscal, o inquérito e a medida seriam juridicamente possíveis. 3. Não carece de fundamentação idônea a decisão que, de forma sucinta, acolhe os fundamentos apresentados pelo Órgão ministerial, os quais narram de forma pormenorizada as circunstâncias concretas reveladoras da necessidade e da adequação da medida de busca e apreensão. 4. Ordem denegada. (STF, HC107362, Rel. Min. Teori Zavascki, p. 02/03/15)

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PECULATO, CORRUPÇÃO, FRAUDE EM LICITAÇÕES, FALSIDADE IDEOLÓGICA E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. DENÚNCIA IMPUTANDO A PRÁTICA DE ILÍCITOS. AUTORIA IDENTIFICADA. AUSÊNCIA DE ASSINATURA. IMPOSSIBILIDADE DE SE CONSIDERAR A DELAÇÃO ANÔNIMA. REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PRELIMINARES PARA A APURAÇÃO DA VERACIDADE DAS INFORMAÇÕES. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. Esta Corte Superior de Justiça, com supedâneo em entendimento adotado por maioria pelo Plenário do Pretório Excelso nos autos do Inquérito n. 1957/PR, tem entendido que a notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não é idônea para a instauração de inquérito policial ou deflagração da ação penal, prestando-se, contudo, a embasar procedimentos investigatórios preliminares em busca de indícios que corroborem as informações da fonte oculta, os quais tornam legítima a persecução criminal estatal. (...) (STJ, RHC 44971, Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo, p. 01/09/15)

Porém, a mesma jurisprudência admite a possibilidade de a Denúncia estar embasada em elementos de informação produzidos no curso de Inquérito Civil Público, a saber:

EMENTA DENÚNCIA. PECULATO. ART. 312 DO CÓDIGO PENAL. PRELIMINAR DE NULIDADE DAS PROVAS COLHIDAS EM INQUÉRITO CIVIL. PRELIMINAR REJEITADA. CONDUTA ATÍPICA. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. 1. O Ministério Público pode oferecer denúncia com base em elementos colhidos no âmbito de inquéritos civis instaurados para apurar ilícitos administrativos no bojo dos quais haja elementos aptos a embasar imputação penal. Precedentes. 2. O foro por prerrogativa de função não se estende às ações civis públicas por improbidade administrativa nem aos inquéritos civis conduzidos por integrantes do Ministério Público (art. 129, III, da CF), ainda que os fatos apurados possam ter repercussão penal. Preliminar rejeitada. 3. A utilização dos serviços custeados pelo erário por funcionário público no seu interesse particular não é conduta típica de peculato (art. 312, do Código Penal), em razão do princípio da taxatividade (art. 5º, XXXIX, da Constituição da República). Tipo que exige apropriação ou desvio de dinheiro, valor ou outro bem móvel, o que na hipótese não ocorre. 4. Diferença entre usar funcionário públicoem atividade privada e usar a Administração Pública para pagar salário de empregado particular, o que configura peculato. Caso concreto que se amolda à primeira hipótese, conduta reprovável, porém atípica. 5. Denúncia rejeitada. (STF, Inq. 3776, Rel. Min. Rosa Weber, p. 04/11/14)

HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DE RECURSO ORDINÁRIO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E PECULATO. VEREADORES. USO DE VERBA PÚBLICA EM PROVEITO PESSOAL. ACUSAÇÃO BASEADA EM INVESTIGAÇÃO CONDUZIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. ELEMENTOS COLIGIDOS EM INQUÉRITO CIVIL PÚBLICO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE PATENTE. NÃO CONHECIMENTO. 1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem como substitutiva de recurso ordinário. 2. O inquérito policial não é indispensável ao oferecimento da denúncia, podendo o Ministério Público formar sua convicção à guisa de outros elementos. 3. Hipótese em que a denúncia se baseia em inquérito civil público, no bojo do qual foram coligidas provas para embasar a persecução penal, não havendo falar, portanto, em ilegalidade. Precedentes desta Corte e do STF. 4. Habeas corpus não conhecido. (STJ, HC227946, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, p. 07/04/14).
 
Prosseguindo, esta mesma jurisprudência admite que o Inquérito Civil Público seja instaurado com base em representação apócrifa, senão vejamos:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CERCEAMENTO DE DEFESA. NECESSIDADE DE PRODUÇÃO DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. PRECEDENTES. UTILIZAÇÃO DE PROVA EMPRESTADA. RESPEITO AOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. SÚMULA 83/STJ. INQUÉRITO CIVIL. ABERTURA COM BASE EM DENÚNCIA ANÔNIMA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. SÚMULA 83/STJ. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. PRORROGAÇÃO DO PRAZO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO STF. PARTICIPAÇÃO DO MP EM TODOS OS PROCEDIMENTOS DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ. DOSIMETRIA DAS PENAS. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. DESPICIENDO A ANÁLISE QUANDO APLICADO O ENTENDIMENTO PACÍFICO PELA ALÍNEA "A" DO PERMISSIVO CONSTITUCIONAL. (...) 4. Esta Corte já se manifestou no sentido de que a denúncia anônima não é óbice à instauração de inquérito civil por parte do Ministério Público. A instauração de inquérito civil é prerrogativa constitucionalmente assegurada ao Parquet, a quem compete a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. 5. Nesse diapasão, a legislação atinente ao Ministério Público autoriza sua atuação ante o conhecimento de fatos que ensejem sua intervenção, irrelevante tratar-se de denúncia anônima. Precedentes. Súmula 83/STJ. (...) (STJ, REsp 1447157, Rel. Min. Humberto Martins, p. 20/11/15)

Portanto, se a Denúncia pode estar alicerçada em Inquérito Civil Público, e se este pode ser instaurado a partir de denúncia anônima, é possível concluir que, ou a jurisprudência erra ao não admitir denúncia anônima como apta a desencadear a investigação criminal, ou erra ao admitir denúncia anônima como apta a desencadear um Inquérito Civil, que, por sua vez, pode embasar uma Denúncia.
           
A nosso sentir, o erro ocorre na primeira das hipóteses. Não há justificativa válida para concluir-se que a denúncia anônima não possa, por si só, desencadear uma investigação criminal, exigindo-se diligência preliminar direcionada à constatação de sua verossimilhança.

O argumento técnico utilizado é o de que a Constituição Federal veda o anonimato (art. 5º,  IV, CF). Porém, esta vedação está intimamente relacionada à possibilidade do direito de resposta e à reparação dos danos materiais, morais ou à imagem da pessoa objeto da manifestação (art. 5º, V, CF). Não nos parece crível que esta vedação do anonimato, com cunho nitidamente civilista, impeça que a denúncia anônima possa desencadear a atuação da Polícia ou do Ministério Público. Além disso, seria sobrepor, de forma apriorística, interesse particular ao interesso coletivo da apuração de fatos ilícitos ou criminosos.

Ademais, este raciocínio peca ao associar a denúncia anônima a uma denúncia (i) em relação a uma pessoa específica; e/ou (2) sem qualquer tipo de comprovação.

Com efeito, às vezes, a denúncia não se direciona a uma pessoa determinada. Por exemplo, alguém pode encaminhar denúncia à Polícia afirmando que um determinado imóvel abandonado, ou um terreno baldio qualquer, é local de tráfico de drogas e prostituição infantil. Não se está, com isso, a imputar conduta a determinada pessoa. Indaga-se, então, de que modo esta denúncia anônima ofenderia a vedação do anonimato? 

Por outro lado, nem sempre a denúncia anônima dirá simplesmente que Tício é assaltante de banco e ponto final. Em nossa experiência prática, podemos afirmar que é bastante comum que a representação apócrifa seja acompanhada de documentos que permitam inferir a verossimilhança de seu conteúdo.

Exemplificativamente, podemos citar uma representação que mencione que, no Município X, uma determinada licitação foi vencida de forma fraudulenta pela empresa Y, cujo sócio é laranja do Prefeito, já encaminhando informações extraídas do Portal da Transparência a respeito da licitação (indicando número, objeto, empresas participantes etc...) e dados que apontem que o sócio recebe o benefício social do Bolsa Família ou que trabalha para a família do gestor (motorista, p.ex).

Nessa hipótese, essa documentação já não se fez acompanhada de indícios mínimos de verossimilhança? Por qual razão não poderia ser instaurado Inquérito Policial e se exigiria diligências preliminares?

Por fim, a exigência ofende o princípio da eficiência administrativa, demonstrando-se formalismo exacerbado. É que a denúncia anônima não será descartada. Na verdade, ela ensejará a adoção de diligências preliminares a serem efetuadas pelo órgão público e devidamente documentadas e registradas.

Qual, então, a diferença entre instaurar um Inquérito Policial e efetuar uma diligência in loco, p.ex, e efetuar estas diligência in loco e, após, instaurar Inquérito Policial? Não estava o mesmo órgão público, valendo-se de seus servidores públicos, investigando um fato? A nomenclatura que se dê ao procedimento administrativo (Inquérito Policial, Verificação Preliminar de Informação etc...) é fator determinante para se definir a licitude, ou não, da prova?

Em arremate, vê-se que a suposta impossibilidade de a denúncia anônima autorizar, por si só, a instauração de investigação criminal é mais um exemplo do denominado “garantismo hiperbólico monocular”, que vê nulidades e ilicitudes onde elas não existem.  

2 comentários:

  1. Bruno,

    Excelentes as suas intervenções jurídicas, especialmente aquelas en que deixa claro a sua posição.

    Por mais que nos possa parecer, isso é bem raro hoje em dia: não se tem opiniões. Só explanações estéreis e sem volume pessoal...

    Notadamente sobre esse post, já caracterizando-o com o prestígio necessário, eu não vejo pela mesma ótica. Pelo menos não condeno a jurisprudência nacional.

    Acredito que a jurisprudência brasileira neste ponto não está tão distante daquela adotada em outros países. Até na Itália Fascista (Código de Processo Penal de 1930) - documenti anonimi, denunce anonime e scritti anonime, existia restrição a tais meios.

    Concordo com você que há uma desvitalização do sentido da persecução penal. Acredito que o Estado tem o dever de apurar e punir qualquer agente seu ou particular que transgrida o regime jurídico constitucional de paz.

    Agora, quando esse mesmo Estado (polícia) recebe uma 'denúncia' anônima, penso que há diferença entre instaurar diretamente um inquérito policial ou diligenciar minimamente no sentido de verificar a aparência de verdade dos fatos narrados, até mesmo em homenagem à eficiência administrativa ou do processo).

    A carga de uma diligência antecedente e a de um IPL são, a meu ver, distintas. Concordo que no âmbito de um IPL essa diligência seria feita, mas não é de se cogitar aqui alguma espécie de continência daquele (IPL) sobre esta (diligência antecedente).

    A repercussão disso é relevante.

    A) No cível, p. ex., quando o MP recebe uma 'denúncia' anônima via Ouvidoria. Sem nenhum contributo probatório (estamos a cuidar deste caso, pois, do contrário (se acompanhada de mínimos elementos de informação, essa discussão perde integridade teórica), será que o membro do MP(MPF) determinará a instauração do inquérito civil público automaticamente?

    Acredito que não.

    B) A tese do anônima tem seu sentido. Não penso que o direito individual da vedação do anonimato esteja aprisionado às questões patrimoniais (direito civil). Ele é sobretudo um direito de proteção horizontal - particular particular, em especial porque permite um cultivo ético, mais precisamente porque permite que o delator venha a ser punido criminalmente por a eventual mentira.

    C) Será mesmo necessário banalizar a instauração de IPLs e resultar, não conheço a estatística, em 'trotes'. Será que isso não acabaria por fomentar a prática dissimulada de pessoas de índole duvidosa a elas mesmas num sentar de cadeira no prograna word e terrorizar a visa daquele desafeto?

    Reitero qur se a delatio vier acompanhada de um contributo informativo razoável e moral, aí sim, não vejo maiores inconvenientes em instaurar o IPL.

    Ou, quem sabe, até uma ação penal.

    Por fim, discordo da associação feita quanto a delação anônima servir para apoiar o inquérito civil e não o policial. Reitero que por vezes nem este último poderá set desencadeado. Se for, obviamente não será por uma dúzia ou centemas de palavras soltas num pedaço de papel, mas sim quando provida de coerência. O anonimato aqui é sérvil à proteção do indivíduo delator e não induz violação a qualquer outra coisa. Ademais, as diligências por ventura desencadeadas no caderno cível amadureceu os fatos e, por isso, podem supedanear sim uma eventual denúncia, sem que isso represente qualquer incoerência.

    Novamente: seus textos são ótimos.

    Um abraço

    Fernando Faria.

    Obs.: texto não revisado (via celular).

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    1. Fernando, obrigado pelo elogio e por suas considerações. Sinta-se à vontade para fazê-las sempre.

      Quando eu me referir ao fato de que a instauração direta de IPL com base em denúncia anônima, eu apenas critiquei a tese de que isto, por si só, seria considerado nulidade e ensejaria a ilicitude das provas produzidas na investigação. Não afirmei que necessariamente o IPL deveria ser instaurado. Se a denúncia não tiver qualquer tipo de comprovação, é possível a adoção de diligências prévias ou, até mesmo, a não-instauração de IPL, remetendo a decisão à Corregedoria da Polícia. Dessa forma, o risco de aumento dos "trotes" não me parece acontecer.

      O que quis mencionar - e ratifico o meu entendimento - é que o simples fato de o IPL ter sido instaurado a partir de denúncia anônima não o torna imprestável. E destaquei, inclusive, que muitas denúncias anônimas vêm amparadas em forte acervo documental, já permitindo inferir a sua verossimilhança.

      Em relação à instauração de ICP com base em denúncia anônima, a legislação do CNMP prevê que o fato de ser anônima não impede a instauração direta de ICP (no processo penal, o entendimento é diverso: o fato de ser anônima impede a instauração direta de IPL).

      Isto não implica afirmar que toda denúncia anônima ensejará a instauração de ICP. Em caso de ausência de indícios de verossimilhança, é comum instauramos o denominado Procedimento Preparatório, ou então, obter informações iniciais no corpo da própria Notícia de Fato.

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